|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS/LANÇAMENTOS
"ICONOGRAFIA DO RIO DE JANEIRO"
Pesquisa é reunida em dois volumes
Baú de Ferrez mostra traçado das paisagens cariocas
RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Ferrez" é provavelmente
o sobrenome que mais colaborou para preservar a imagem
do Rio de Janeiro como a cidade
maravilhosa que ela de fato é.
Gilberto Ferrez (1908-2000) foi
sem dúvida o maior especialista
na iconografia da arte brasileira.
Sua grande paixão eram as imagens da sua cidade natal. Como se
não bastasse, ele era neto de Marc
Ferrez, um pioneiro da fotografia
no Brasil que registrou magnificamente o Rio em suas fotos. E o bisavô de Gilberto era o escultor
Zéphryn Ferrez, um dos membros da famosa missão artística
francesa de 1816.
Tamanho pedigree está revelado nesta obra monumental, o coroamento da carreira de Gilberto
Ferrez, que infelizmente morreu
meses antes de sua publicação.
Ferrez trabalhava com afinco
nesse livro em seus últimos anos
de vida. Era um projeto antigo
reunir o fruto das suas pesquisas
em uma obra que facilitasse a vida
dos especialistas, mas que ao mesmo tempo servisse para o leigo
admirar a beleza do Rio e da baía
da Guanabara -beleza natural e
também feita pelo homem-, e
mesmo refletir sobre sua história.
Anos atrás eu estive com Ferrez
em sua aprazível residência no
Rio, cujos fundos davam para um
raro pedaço da Mata Atlântica.
Macacos, pássaros e até tamanduás e jaguatiricas frequentavam
o seu quintal arborizado, dizia,
respondendo minhas perguntas,
me mostrando seu detalhado fichário e falando do projeto deste
livro -que aguardei com ansiedade desde então. Demorou, mas
não fiquei desapontado.
Livros e arte estavam espalhados pela casa de Ferrez, que tinha
uma paixão de antiquário para
descobrir imagens. Este livro é dedicado aos artistas que desenharam ou pintaram o Rio, "e à minha mulher Mary Jessop Dodd
Ferrez (1906-1982), que durante
meio século aturou e estimulou
minha mania de pesquisador e
colecionador inveterado".
O primeiro volume, com 752
páginas e cerca de 4 kg, é um catálogo reunindo descrições de 4.494
imagens do Rio. Estão nele desde
aquelas primeiras gravuras mostrando índios e cartas náuticas
com contornos imperfeitos da
baía, passando pelos mapas dos
que tentavam defender e dos que
atacaram a cidade colonial portuguesa, até a belíssima produção
de viajantes e artistas do século 19.
Neste volume infelizmente nem
todas as descrições são acompanhadas de imagens, reproduzidas
em preto-e-branco.
O segundo volume reúne uma
seleção das imagens -pouco
mais de 200- reproduzidas em
cor. Como gosta de dizer determinado tipo de historiador fã de clichês, trata-se de uma "construção" de uma iconografia do Rio.
Tanto faz; a seleção de imagens é
representativa, e qualquer outra
escolha não mudaria muito o caráter deste segundo volume. Para
o leigo é uma festa, criando o tipo
de livro para ser manuseado com
calma, admirando-se cada imagem como se estivessem nas paredes de um museu.
Mas engana-se quem acha que
esse tipo de livro -especialmente
o segundo volume- serve só para dondocas colocarem sobre
suas mesinhas de centro para as
visitas folhearem tomando café.
Durante muito tempo os historiadores privilegiaram o documento escrito. Mas a imagem, valendo ou não por mil palavras,
também conta uma história. "Na
última geração, ou algo assim, os
historiadores ampliaram seus interesses consideravelmente para
incluir a história das mentalidades, da vida cotidiana, da cultura
material, do corpo e por aí vai",
escreveu o historiador Peter Burke em um excelente artigo na revista especializada "History Today" deste mês. Para Burke, teria
sido impossível fazer esse tipo de
pesquisa apenas com documentos oficiais; uma fonte importantíssima de informações está nas
imagens.
Ou seja, um livro catalogando a
maior parte do que se registrou
sobre o Rio tem validade não só
para o historiador da arte ou da
arquitetura, mas para todos os
que buscam inspiração na musa
Clio, a patrona da história na mitologia grega.
Um exemplo elucidativo são as
imagens que mostram a entrada
da frota francesa no Rio durante a
tomada da cidade pelo corsário
francês René Duguay-Trouin em
1711.
Nas memórias do corsário está
um mapa que mostra uma frota
portuguesa defendendo o Rio alinhada do lado de Niterói. Mas outros mapas também feitos por
franceses não mostram tal frota
-e quem demonstrou isso foi
Gilberto Ferrez, em um livro iconográfico anterior, "O Rio de Janeiro e a Defesa do Seu Porto"
(Serviço de Documentação Geral
da Marinha, Rio, 1972).
Ou seja, o ilustrador das memórias de Duguay-Trouin embelezou a vitória francesa colocando
uma frota inimiga onde ela não
estava. E essa imagem falsa continua sendo reproduzida toda vez
que se menciona o saque do Rio
de 1711!
Um raro erro no catálogo de
Ferrez sobre um desses mapas é
salutar, para o especialista se lembrar que, por melhor que seja o livro, ele tem de fazer sua própria
pesquisa e checar todos os dados.
Ferrez dá como autor da imagem
104 (infelizmente não reproduzida no livro) um certo "capitão De
Brulot, francês, 16??-17??". Na verdade, este é um posto na marinha
francesa, "capitaine de Brûlot" (literalmente "capitão-de-brulote".
Um brulote é uma embarcação
carregada de material inflamável
para provocar incêndio nos navios inimigos, mas o posto apenas
usava o nome "brulote", pois um
"capitão-de-brulote" podia comandar um verdadeiro navio, como uma fragata ou uma corveta).
O verdadeiro autor do mapa é o
capitão-de-brulote e engenheiro
militar De Saccardi.
Iconografia do Rio de Janeiro:
1530-1890 (dois volumes)
Autor: Gilberto Ferrez
Editora: Casa Jorge Editorial
Quanto: R$ 250, em média (1.052 págs.,
no total)
Texto Anterior: Livros/Lançamentos - "Dylan Thomas: The Collected: Coletânea de cartas discute a poesia do autor Próximo Texto: Resenha da Semana - Bernardo Carvalho: Suspense absurdo Índice
|