São Paulo, sábado, 07 de abril de 2001

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LIVRO/LANÇAMENTO

"DYLAN THOMAS: THE COLLECTED LETTERS"

Poeta pedia dinheiro e desculpas por sua conduta quando embriagado

Colet ânea de cartas discute a poesia do autor

MARCELO COELHO
DO CONSELHO EDITORIAL

Um dos maiores poetas de língua inglesa do século 20, Dylan Thomas nasceu em Swansea, no País de Gales, em 1914, e morreu aos 39 anos, em Nova York, durante uma turnê de conferências. Há uma tradução de suas poesias completas para o português, infelizmente sem o texto original, feita por Ivan Junqueira para a José Olympio.
Muitas coisas contribuem para criar uma aura mítica em torno de Dylan Thomas. Sua poesia, embora extremamente cuidada do ponto de vista técnico, é bastante declamatória, "profética", romântica, assumindo o caráter de um hino de louvor à natureza, ao sexo, a Deus.
Uma mistura de imaginário bíblico, referências eróticas e associações bombásticas faz de sua poesia algo bem distante da ironia, de um certo intelectualismo, ou pelo menos de uma certa reserva e discrição no tom, que são comuns na poesia de um T.S. Eliot ou de um Wallace Stevens.
A imagem de "bardo romântico" é reforçada pelo fato de Dylan Thomas ter estreado muito jovem como escritor -aos 22 anos já tinha dois livros publicados, chamando a atenção de autores como T.S. Eliot e Edith Sitwell- e, principalmente, por ter vivido num estado de angustiante pobreza e de intratável alcoolismo.
Não é surpresa, assim, que cerca de metade das cartas reunidas neste volume se componha de pedidos de dinheiro e de desculpas pelas coisas que Thomas fazia quando embriagado. Impossibilitado de ter algum emprego fixo, o poeta não tem como sustentar a mulher e os três filhos. A um amigo, conta que, enquanto escrevia um poema, ouviu uma mulher na rua vendendo biscoitos; uma tortura enorme, diante da fome que sentia. O amigo, gentilmente, envia-lhe uma caixa de biscoitos junto com a carta de resposta.
Durante a Segunda Guerra, Thomas tenta escapar do serviço militar; termina arranjando um emprego na BBC, escrevendo roteiros para transmissões de propaganda e para documentários. Seu primeiro trabalho, aliás, é fazer um script para um programa destinado aos ouvintes brasileiros, sobre o duque de Caxias.
Vai-lhe sobrando cada vez menos tempo para escrever poemas. Thomas era um extraordinário declamador de poesia -gravações de seus recitais estão à venda ainda hoje. Famoso como poeta e declamador, foi convidado quatro vezes para ir aos Estados Unidos, em turnês exaustivas, que aliás lhe renderam bom dinheiro.
Mas o dinheiro acabava logo; poucas semanas depois de voltar, Thomas já está pedindo mais ajuda, em tom desesperado. Cenas tremendas de bebedeira, durante essas viagens, são contadas no livro de John Malcolm Brinnin, "Dylan Thomas in America".
O melhor desta edição das cartas completas de Thomas não está nesse cotidiano de pesadelo e de ruína material. As muitas cartas em que Dylan Thomas discute poesia -em especial as que endereça à escritora Pamela Johnson- valem por todo o volume.
Pamela Johnson mandava seus poemas para Dylan comentar; as respostas são extensas, detalhadas e candentes. "Nada neste mundo é desinteressante. Como pode uma coisa não ter interesse se está neste mundo, se tem o mundo à sua volta, que tem um passado, um presente e um futuro... Um bloco de pedra é tão interessante como uma catedral, ou até mais interessante, pois é a catedral em essência; deu substância à edificação da catedral e significado para o significado da catedral, pois pedras são sermões, como todas as coisas."
Isolada assim de seu contexto, a citação talvez seja um pouco banal. Mas o fluxo de imagens, constante na poesia do autor, é irresistível em suas cartas. Thomas critica um poema de seu amigo Vernon Watkins: "É tolo o que eu vou dizer, mas esse poema parece tão obviamente escrito com palavras... eu quero o meu sangue sentimental: não o sangue de Roy Campbell, que é um adjetivo vermelho e ruidoso numa veia transparente, mas o sangue das folhas, poços, represas, fontes, conchas, ecos, arco-íris, azeitonas, sinos, oráculos, tristezas".
Exageros de imaginação estão presentes. Thomas narra um jantar de que participou, no qual um indiano estava encarregado da cozinha. Tudo era à base de curry. A coisa era tão picante que, na primeira garfada, Thomas ficou sem voz, e um conviva "teve de ser atendido". Ele continua: "Depois do prato principal, uma mulher, a sra. Henderson, olhou para o prato e viu, numa borda, uma estranha coisa borrachenta (...). Interessada, ela espetou-a com o garfo e descobriu que era a pele inteira de sua língua".
Para sua mulher, Caitlin, Thomas escreve: "Eu te amo. Eu sempre soube que te amei mais do que qualquer homem amou uma mulher desde que o mundo começou; mas agora eu te amo mais do que isso". As cartas a Caitlin são as únicas em que as desculpas típicas de Thomas adquirem um tom patético e autopiedoso. Em geral, a despeito das enormes dificuldades que enfrentava, Dylan Thomas parece imune ao ressentimento e à maledicência. Há algumas farpas contra seus contemporâneos, como Stephen Spender ou Louis MacNeice; mas em tudo, mesmo nos momentos mais amargos, sobressai uma espécie de entusiasmo universal.
Vemos o autor entregue a um ato de doação -irrefletida e suicida, por certo- de si mesmo; o que faz deste livro não só um excelente comentário sobre a poesia, sobre poetas e sobre o próprio Dylan Thomas, mas também um documento humano excepcional.
As notas de Paul Ferris -organizador da edição e biógrafo de Thomas- são utilíssimas e minuciosas ao extremo. Se se pode dizer assim, o defeito do livro é ser tão cuidadoso e completo: uma seleção das cartas poderia ser bem mais acessível ao leitor.



Dylan Thomas: The Collected Letters
    
Organizador: Paul Ferris
Editora: Dent
Quanto: US$ 40 (1.062 págs.)
Onde encomendar: www.livcultura.com.br




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