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São Paulo, segunda-feira, 07 de abril de 2003

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LITERATURA

Jornalista descarrega opressões das mulheres chinesas

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Xinran , a autora do livro "As Boas Mulheres da China" nasceu em Pequim em 1958, quando a China não podia estar mais pobre. Ela, no entanto, era rica, vivia em Pequim com a avó, comendo chocolate todo dia. Tinha tranças e jardim florido. A família já vinha sendo perseguida há tempos, o avô no início da Revolução Cultural fora preso, e a mãe, estudiosa, culta, entrou no Exército e no Partido bem moça.
Mas, do mesmo modo que Xinran, no futuro, aos 16 anos, foi incluída na classe negra daqueles que tinham parentes capitalistas. Passou a vida competindo com homens na carreira e perdendo por causa da mancha de seus antecedentes familiares.
Aos sete anos Xinran foi morar com os pais pela primeira vez na sua vida, e, logo depois da mudança, antes que pudesse ter a noção do que era uma vida em família, a casa sofreu uma batida dos guardas vermelhos porque o pai era membro da Associação Chinesa de Engenheiros Mecânicos de Alto Nível e especialista em Mecânica Elétrica. Olhem só o motivo da culpa! Por causa dos conhecimentos e cargos foi acusado de lacaio do imperialismo britânico, representante do feudalismo, capitalismo e revisionismo.
Nessa altura, a menina começou a ver que comer chocolate todo dia não compensava o que veio a sofrer com professores e crianças "vermelhas". Naquele mesmo dia da batida em casa, arrancaram-lhe as tranças, penteado burguês. Na escola, apanhava das crianças, sofria com a maldade tão própria desta idade, fruto das próprias inseguranças e medos.
De modo geral, foram as mulheres as que mais sofreram, sobretudo as meninas que cresceram durante a Revolução Cultural. Viram-se cercadas por muita ignorância, que as famílias e as escolas não podiam sanar por serem também ignorantes no assunto de educação sexual feminina, que deveria ser calado e não ensinado.
Ao amadurecerem, tornavam-se vítimas de violência masculina, perdiam as esperanças, algum romantismo que restasse. As mulheres chinesas que suportaram a Revolução Cultural carregaram para sempre recordações oprimidas, queixas caladas, pequenas mortes. Quando, em 1983, Deng Xiao Ping iniciou o processo vagaroso de abertura, os jornalistas começaram a fazer pequenas mudanças nas notícias. Xinran, então radialista, elaborou um programa "Palavras na Brisa Noturna". Abriu um pequeno espaço para as mulheres se manifestarem, para que pudessem falar anonimamente e de coração aberto.
Era mais fácil conversar no rádio com uma jornalista desconhecida do que com um parente próximo. A maioria das que escreviam eram mulheres e elas próprias foram moldando o programa. Muitos problemas eram sexuais. Xinran ia aprendendo juntamente com elas coisas que jamais poderia imaginar. Todas as mulheres confusas, ela um pouco também. Resolveu entender as chinesas. Partiu para a briga, para ler todas as cartas, sair atrás de todas as pistas, ajudar a salvar vidas, tudo isto condensado depois em dez minutos de programa ao vivo.
Quem lhe escrevia? A moça que só veio a conhecer um toque de ternura no corpo com o caminhar de uma mosca pela sua pele, as sexualmente molestadas, as não-religiosas, as cristãs, as budistas, as jogadoras de "mah jong", as homossexuais, mulheres de dirigentes do Partido, as prisioneiras, as mulheres das Forças Armadas.
As universitárias, céticas, queriam saber três coisas. Qual a filosofia das mulheres? O que é a felicidade para uma mulher? O que faz uma boa mulher? Eram as três perguntas principais de uma geração criada sem um ambiente normal de carinho, mulheres sofridas. Estas perguntas foram ao ar, a jornalista se tornou famosa e um dia se mandou para a Inglaterra onde escreveu o seu livro, bem simples, relatando uma série desses problemas que passaram por suas mãos. Ela não escreve como imaginamos que uma chinesa de Pearl Buck ou Lin Yutang escreveria, com passinhos miúdos, flores de cerejeiras, a neve, os quimonos, o chá, e os pilriteiros. Não, escreve como quase todos os jornalistas, mal pra burro, mas dá o seu recado e é lida de uma só vez, depressinha. Estilo de jornal, mesmo, conta bem a sua história.
Dei o livro à minha nora que é chinesa e que emigrou para o Brasil com três anos. Ela leu durante a noite e me devolveu, seca - "Tive pesadelos a noite inteira. Não queria ter saído de lá." -Não entendi -"Como não? E passado por todo este sofrimento?" -Ela não respondeu. Eu entendi. É enfermeira, especialmente dotada para tratar e ajudar. Sentia-se magoada por ter deixado tudo para trás, mãezona dos alívios que é.


AS BOAS MULHERES DA CHINA. De: Xinran. Editora: Companhia das Letras. Quanto: R$ 35 (286 págs.)


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