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LITERATURA
Jornalista descarrega opressões das mulheres chinesas
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Xinran , a autora do livro "As
Boas Mulheres da China"
nasceu em Pequim em 1958,
quando a China não podia estar
mais pobre. Ela, no entanto, era
rica, vivia em Pequim com a avó,
comendo chocolate todo dia. Tinha tranças e jardim florido. A família já vinha sendo perseguida
há tempos, o avô no início da Revolução Cultural fora preso, e a
mãe, estudiosa, culta, entrou no
Exército e no Partido bem moça.
Mas, do mesmo modo que
Xinran, no futuro, aos 16 anos, foi
incluída na classe negra daqueles
que tinham parentes capitalistas.
Passou a vida competindo com
homens na carreira e perdendo
por causa da mancha de seus antecedentes familiares.
Aos sete anos Xinran foi morar
com os pais pela primeira vez na
sua vida, e, logo depois da mudança, antes que pudesse ter a noção do que era uma vida em família, a casa sofreu uma batida dos
guardas vermelhos porque o pai
era membro da Associação Chinesa de Engenheiros Mecânicos
de Alto Nível e especialista em
Mecânica Elétrica. Olhem só o
motivo da culpa! Por causa dos
conhecimentos e cargos foi acusado de lacaio do imperialismo britânico, representante do feudalismo, capitalismo e revisionismo.
Nessa altura, a menina começou a ver que comer chocolate todo dia não compensava o que veio
a sofrer com professores e crianças "vermelhas". Naquele mesmo
dia da batida em casa, arrancaram-lhe as tranças, penteado burguês. Na escola, apanhava das
crianças, sofria com a maldade
tão própria desta idade, fruto das
próprias inseguranças e medos.
De modo geral, foram as mulheres as que mais sofreram, sobretudo as meninas que cresceram durante a Revolução Cultural. Viram-se cercadas por muita ignorância, que as famílias e as escolas
não podiam sanar por serem também ignorantes no assunto de
educação sexual feminina, que
deveria ser calado e não ensinado.
Ao amadurecerem, tornavam-se vítimas de violência masculina,
perdiam as esperanças, algum romantismo que restasse. As mulheres chinesas que suportaram a
Revolução Cultural carregaram
para sempre recordações oprimidas, queixas caladas, pequenas
mortes. Quando, em 1983, Deng
Xiao Ping iniciou o processo vagaroso de abertura, os jornalistas
começaram a fazer pequenas mudanças nas notícias. Xinran, então
radialista, elaborou um programa
"Palavras na Brisa Noturna".
Abriu um pequeno espaço para as
mulheres se manifestarem, para
que pudessem falar anonimamente e de coração aberto.
Era mais fácil conversar no rádio com uma jornalista desconhecida do que com um parente próximo. A maioria das que escreviam eram mulheres e elas próprias foram moldando o programa. Muitos problemas eram sexuais. Xinran ia aprendendo juntamente com elas coisas que jamais poderia imaginar. Todas as
mulheres confusas, ela um pouco
também. Resolveu entender as
chinesas. Partiu para a briga, para
ler todas as cartas, sair atrás de todas as pistas, ajudar a salvar vidas,
tudo isto condensado depois em
dez minutos de programa ao vivo.
Quem lhe escrevia? A moça que
só veio a conhecer um toque de
ternura no corpo com o caminhar
de uma mosca pela sua pele, as sexualmente molestadas, as não-religiosas, as cristãs, as budistas, as
jogadoras de "mah jong", as homossexuais, mulheres de dirigentes do Partido, as prisioneiras, as
mulheres das Forças Armadas.
As universitárias, céticas, queriam saber três coisas. Qual a filosofia das mulheres? O que é a felicidade para uma mulher? O que
faz uma boa mulher? Eram as três
perguntas principais de uma geração criada sem um ambiente
normal de carinho, mulheres sofridas. Estas perguntas foram ao
ar, a jornalista se tornou famosa e
um dia se mandou para a Inglaterra onde escreveu o seu livro,
bem simples, relatando uma série
desses problemas que passaram
por suas mãos. Ela não escreve como imaginamos que uma chinesa
de Pearl Buck ou Lin Yutang escreveria, com passinhos miúdos,
flores de cerejeiras, a neve, os quimonos, o chá, e os pilriteiros. Não,
escreve como quase todos os jornalistas, mal pra burro, mas dá o
seu recado e é lida de uma só vez,
depressinha. Estilo de jornal,
mesmo, conta bem a sua história.
Dei o livro à minha nora que é
chinesa e que emigrou para o Brasil com três anos. Ela leu durante a
noite e me devolveu, seca - "Tive
pesadelos a noite inteira. Não
queria ter saído de lá." -Não entendi -"Como não? E passado
por todo este sofrimento?" -Ela
não respondeu. Eu entendi. É enfermeira, especialmente dotada
para tratar e ajudar. Sentia-se magoada por ter deixado tudo para
trás, mãezona dos alívios que é.
AS BOAS MULHERES DA CHINA. De:
Xinran. Editora: Companhia das Letras.
Quanto: R$ 35 (286 págs.)
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