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"A 'modernidade de redoma' está em crise"
"Mérito" na universidade, diz Velho, se deu "às custas da expulsão de parte da população"
"Por que só se pode falar em raça na hora de discriminar, e não na hora de combater a discriminação?", questiona Velho, defensor das cotas
Tuca Vieira - 13.mai.2004/Folha Imagem
![](../images/i0704200702.jpg) |
Manifestantes acorrentados em frente à Faculdade de Direito da USP, em São Paulo, defendem a política de cotas nas universidades |
DA REPORTAGEM LOCAL
Na entrevista a seguir, Otávio
Velho fala sobre o modo reverente como lidamos com as instituições da modernidade, "como elefantes numa loja de cristais", a ponto de tornarmos a
democracia engessada e menos
eficiente.
(RAFAEL CARIELLO)
FOLHA - Como é que se relaciona o
estudo da modernidade entre nós,
brasileiros, e a defesa que o sr. fez da
monarquia à época do plebiscito,
em 1993, de que trata no livro?
VELHO - Na época em que foi
proposto o plebiscito, me chamou a atenção como é que entre pessoas bem pensantes, intelectuais, e mesmo além desse
círculo, na população em geral,
a monarquia ficou sendo associada ao atraso, a uma coisa
"pré-moderna", a uma coisa
"fora do lugar".
Observando, na verdade, o
que acontece no mundo contemporâneo, não se pode dizer
que os países que são republicanos são mais avançados ou
modernos que os países monárquicos. Basta você se lembrar do Reino Unido, da Espanha. Então esse negócio, de alguma maneira, me ajudou a
pensar mais sobre a modernidade entre nós.
"Mais realistas que o rei."
Nesse caso, por que pretendemos ser mais modernos que os
supostos modernos, aqueles
que inventaram a modernidade? Essa era a questão para
mim. Pode-se falar também
que havia aí nesse caso uma espécie de reificação da modernidade. Ela, hipostasiada, retirada de seu contexto, e colocada
em abstrato. E nós, até por um
certo sentimento de que temos
alguma falta, alguma falha em
relação a ela, seríamos obrigados a ser mais modernos do que
os modernos, talvez para mostrar, digamos assim, nossa
aliança com a modernidade.
Vira então um anátema falar
em monarquia. Minha participação no plebiscito foi, portanto e de certo modo, performática. Por ela, tentava desnaturalizar essa questão para tentar
ajudar as pessoas a pensarem
de uma outra maneira.
FOLHA - O sr. trata esse "ocidentalismo" no Brasil, essa fome de modernidade, como algo que foi usado
durante muito tempo como um fator de distinção. Alguns têm acesso
a ela, que se torna então uma espécie de "bem de luxo". É isso?
VELHO - Exatamente. Nessas
situações, em países como os
nossos -estou pensando no
Brasil, mas também em vizinhos latino-americanos-, é como se você tivesse que criar
uma modernidade de redoma
às custas da discriminação com
os não-modernos internos ao
país.
Que é um pouco o que a gente
vê, por exemplo, na defesa da
universidade. Os princípios de
igualdade e de mérito na universidade se dão às custas da
expulsão ou do não acesso à ela
de boa parte da população. Era
assim. Agora creio que está começando a mudar. Até de uma
maneira que é diferente das
que imaginávamos, quando começam a surgir essas faculdades particulares que proliferam
por aí. Ficamos um pouco assustados, mas é uma forma até
um pouco perversa de irem
surgindo soluções para uma situação insustentável.
Essa modernidade de redoma é algo que podemos associar até às imagens do colonialismo. Quando, por exemplo,
você tem o chá das cinco entre
os colonizados da Índia, às custas do que acontece do lado de
fora dos palácios. É como se entre nós se revelasse esse lado
oculto da modernidade, que é o
colonialismo. Hoje muitos tentam pensar como ele é constitutivo e até instaurador da modernidade. Uma coisa que os
europeus, de muitas maneiras,
ocultaram; e que aqui, para
bom entendedor, se revela,
quase que em forma mesmo de
caricatura.
FOLHA - Isso se parece em muitos
momentos com o que diz o Roberto
Schwarz sobre o uso ostentatório de
"bens" de cultura no século 19, no
Brasil escravocrata.
VELHO - Sem dúvida nenhuma.
Acho que a intuição do Roberto
Schwarz se mantém e se estende ao século 20. Ela nos ajuda a
pensar hoje em dia.
É interessante como no Brasil os arranjos institucionais
que herdamos dos EUA e da
Europa são reificados. Ninguém pode mexer em nada! É
como se estivéssemos numa loja de cristais. Nada pode ser
mexido. Coisas que os americanos e europeus não precisam
fazer. Talvez eles prestem menos homenagens retóricas à democracia e a vivam, por isso
mesmo, mais plenamente.
Aqui qualquer proposta de
mudança de cenário institucional é imediatamente barrada.
Não lidamos com essas coisas
com naturalidade. É como o estrangeiro que aprende uma língua e não consegue nunca dominá-la. Acaba falando mais
corretamente a língua do que o
nativo o faria.
A modernidade, nos modelos, supõe uma separação muito grande entre os domínios
-economia, religião, política,
tudo muito separado. E é como
se no Brasil nós tivéssemos dificuldades em realizar essa separação entre domínios. Hoje
fico pensando se essa dificuldade também não ajuda a revelar
uma dificuldade que não é só
nossa, e que não é necessariamente uma dificuldade.
Imaginamos que há um problema, por exemplo, quando
começa essa história de evangélicos na política. Estão misturando religião com política!
Ora, não se mistura religião
com política na Europa e nos
EUA? Claro que sim. Nós é que
inventamos que não podemos
misturar. Nem conseguimos lidar com isso. Somos contra.
Não queremos enxergar. Isso é
impossível ou inaceitável. É
preciso reconhecer que essas
coisas existem e assim lidar
melhor com elas.
Como essa história dos lobbies. Não podemos ter lobbies!
Mas, ora, eles estão aí. Não é
melhor reconhecê-los e regulamentá-los, como aliás os americanos fazem?
FOLHA - Lida-se com a modernidade assim porque ela é "importada"
ou isso tem lógica dentro do país?
VELHO - O que me interessa
mais é como esse "horizonte
colonial" funciona entre nós.
Há grupos sociais entre nós, sobretudo nas elites, que incorporam isso. Por que acontece dessa maneira? Uma pista possível
é a criação de distinções hierárquicas. Mas também nós fomos, sim, colonizados. Existe
um modo de olhar o mundo que
se impõe. Ele escanteia alternativas, outras maneiras de olhar
o mundo -e daí nossa dificuldade em pensar alternativas.
FOLHA - E as cotas? Elas têm a ver
com a crise dessa modernidade de
redoma?
VELHO - É um terreno de paradoxos interessante. As pessoas
que são contra as cotas se perguntam: como que essa idéia de
raças, que é justamente uma invenção colonial que nós queremos esquecer, vai ser agora utilizada pelos supostos colonizados? O que se devia querer não
é justamente que não se fale
mais de raças?
Mas eu pergunto: por que só
se pode falar em raça na hora de
discriminar, e não na hora de
combater a discriminação? É
na hora de combater a discriminação que vocês descobrem
que não existe raça? A novidade
é que esses instrumentos, que
eram utilizados pela classe dominante, hoje passam a ser utilizados pelos dominados.
FOLHA - É como se o sr. dissesse
que as raças já foram feitas, e que
não dá agora para negá-las?
VELHO - Sim. Essa não é uma
questão da "Ciência", com "c"
maiúsculo, mas sim uma questão política. De alguma maneira, como fato social, elas estão
aí. Não só foram feitas, como
continuam a ser feitas. É um
negócio interessante. Fazia
parte de um certo pensamento
moderno dividir o mundo entre as coisas reais e as coisas
construídas. Hoje a insistência
é que uma coisa pode ser real e
construída ao mesmo tempo.
FOLHA - Há mudanças nessa forma
de a sociedade brasileira se relacionar com a modernidade?
VELHO - É talvez possível dizer
que a modernidade de redoma
está em crise. Não está mais
conseguindo construir as suas
redomas, que de certa forma
criavam um espaço privilegiado e garantido. A solução com
mundinhos fechados já não se
sustenta. Isso cria uma época
de muita turbulência, aparentemente de caos, mas também
muito interessante.
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