São Paulo, terça, 7 de abril de 1998

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DISCOS LANÇAMENTOS
Tropicália 30 anos - a voz do produtor

Eduardo Knapp/Folha Imagem
A Polygram lança caixa com cinco discos que foram marco do tropicalismo, todos produzidos por Manoel Barenbein (foto)


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

Por essa época, há 30 anos, veio ao mundo uma série de álbuns pop que mudaram o curso da história da MPB. Cinco desses álbuns são reunidos agora no caixotinho "Tropicália 30 Anos".
"Caetano Veloso", "Gilberto Gil", o disco coletivo "Tropicália ou Panis et Circensis", "Os Mutantes" e "Gal Costa" (deslocado da efeméride, pois só saiu em 69) têm mais em comum que o fato de se inscreverem no que veio a se chamar movimento tropicalista. Foram produzidos por um mesmo homem -não, não é o Liminha.
Trata-se de Manoel Barenbein, 55, descrito por Caetano, em seu livro "Verdade Tropical", como "um judeu paulista narigudíssimo que era produtor contratado da Philips e que comprara nossa briga com carinho e determinação".
De executivo/criador poderoso na Philips (hoje PolyGram) da virada dos 60 aos 70, teve trajetória bem mais tortuosa que a de seus colegas artistas e não costuma ser lembrado como "inventor do pop nacional" ou coisas assim.
A Folha convidou-o a comentar a caixa da PolyGram e revisitar sua participação de bastidor naquele período de revolução no seio da MPB. Leia trechos da entrevista.

Folha - Qual é sua impressão sobre a caixa "Tropicália 30 Anos"?
Manoel Barenbein -
(Examina.) Parece interessante (folheia o encarte de "Caetano Veloso"). Maravilhoso, reproduziram as letras, o texto da contracapa. Tem que ser assim. Pô, nem me mandaram. (Interrompe a entrevista, telefona à PolyGram e pede um exemplar).
Folha - Nem todos os encartes foram reproduzidos fielmente.
Barenbein -
Jura? (Folheia o encarte de "Gilberto Gil"). Não tem nada dentro! Não tem o texto da contracapa de "Tropicália ou Panis et Circensis". Assim não dá...
Acho que o da Gal não devia estar, nem o dos Mutantes. Se eu fosse fazer, seriam só "Caetano Veloso", "Gilberto Gil" e "Tropicália". Essa é a origem. Os outros são a sequência. E a tropicália não pára nesses cinco discos. Teria que fazer algo amplo, e aí seriam sete, oito discos, estouraria o processo.
Folha - Fale sobre sua trajetória até chegar a esses discos.
Barenbein -
Nasci em Ponta Grossa, no Paraná, e vim para São Paulo aos 7 anos. Fui aos poucos me identificando com música, frequentava rádio. Em 59, 60, virei uma espécie de assistente de Walter Silva, o Pica-Pau, que era um entusiasta da bossa nova.
Comecei a trabalhar na gravadora RGE por indicação dele. Fui ser boy da divulgação, o diretor do departamento era o Boni. Acabei assistente de produção, comecei a querer produzir. Foi quando conheci Toquinho e o levei para gravar seu primeiro disco solo, em 65, o primeiro que eu produzi.
Aí Toquinho me levou para conhecer Chico Buarque. Convidei para gravar na RGE, "A Banda" fui eu que produzi. Mas no primeiro disco do Chico fui só assistente de produção. Fiquei na RGE até 67.
Então Armando Pittigliani, que era diretor artístico da Philips, me convidou para assumir o mesmo cargo em São Paulo. Fui para lá na semana em que decidiam o que fazer com o festival da Record -eles tinham 18 dos 36 classificados. Decidiram fazer três LPs, foi meu primeiro trabalho lá. Bem, na Phonogram estavam Caetano e Gil. Entrei logo com "Domingo no Parque" e "Alegria, Alegria", para o festival. E aí nasceu essa história.
Já tinha afinidade com eles, conhecia do teatro de Arena -eu trabalhei com teatro também. Tinham um projeto que era meu sonho: pegar a qualidade da MPB, da bossa, e dar um tom de universalidade. Nossa música tinha um invólucro que dificultava sua vida comercial fora daqui. Queria romper essa barreira.
Folha - Você já pensava a questão comercialmente, então?
Barenbein -
Veja bem, isso é complicado. A música é a arte, mas não existe música boa que não seja comércio. Picasso é uma senhora arte, mas é comércio, porque vale milhões. Música é a mesma coisa. Mas o que eu queria somente era uma coisa diferenciada. Era uma busca por novidade, me dava cócega tentar fazer algo diferente.
Paralelamente ao festival, já estava trabalhando no disco coletivo e também nos discos solo de Caetano e de Gil. "Tropicália" em especial foi um rolo, era para ser de uma maneira e eles bolaram outra entre eles. A gravação era num domingo, Arnaldo Baptista foi ardendo em febre -e nada. Não houve a gravação. Quase desisti de fazer o disco, foi uma crise.
Depois eles explicaram. A idéia inicial era simples, duas faixas para cada artista, só. Mas durante aquela noite eles mudaram tudo, realinharam, criaram o conceito.
Folha - Você produzia trabalhos de caráter mais popular?
Barenbein -
Não. Eu acabei, durante muitos anos, sendo associado à produção de MPB. Em seguida ao festival, gravei disco do Jair Rodrigues, do Ronnie Von, e já era diretor artístico da Elis, produzi Erasmo. Trouxe o Tim Maia para a gravadora. Fui diretor de produção do primeiro disco solo da Rita.
Folha - Qual era sua participação na concepção do tropicalismo?
Barenbein -
Estava sempre diretamente ligado. Por exemplo, a introdução de "Irene", no disco de 69 do Caetano, que pára e o Gil diz que errou, é invenção minha. Fui para a Bahia gravar dois discos, um com Gil, um com Caetano, uma maneira que a companhia achou de conseguir um dinheiro para eles. Eles estavam isolados, banidos, sem dinheiro para sobreviver, e não podíamos ajudar economicamente, dar dinheiro sem mais nem menos -o governo via a gravadora como subversiva.
Resolvemos inventar os discos e dar um adiantamento sobre os direitos que iam ter. Tive que ir à Polícia Federal para explicar que eles não iam sair do estúdio.
Conseguimos um equipamento sem condição alguma. Sentamos no chão, Rogério Duprat, Gil, Caetano, eu e o técnico Ari Carvalhaes. "Que fazemos?" Fizemos eles gravarem violão e voz, saí de lá com dois discos com só dois canais, voz e violão e umas coisinhas. Aqui é que fomos gravar o resto, sem eles.
Folha - Mostrar Gil desconcentrado tinha algum propósito político?
Barenbein -
Não! Nada. Era o conceito, queríamos inovar. Era legal porque era verdade, nascia naturalmente. Não tinha sentido político. Improvisávamos, eu participava criativamente, tomava como um filho meu. Era quase tribal.
"Que Pena" era para ser cantado por Gal e Jorge Ben, mas os tons não batiam. Estávamos no estúdio, não ia dar certo, Caetano estava no corredor. Fui perguntar se dava o tom, ele disse que sim, trocamos. Acabou se tornando antológico. Mas não foi pensado.
Folha - Era fácil dizer a Jorge Ben que ele não ia cantar mais?
Barenbein -
Sem problema, ele tocou violão. Havia um espírito fraternal, uma liberdade. Não existia estrelismo -ainda não existia estrelismo. Pelo menos enquanto trabalhei com eles, até 71, existia entre nós um relacionamento muito profissional e aberto.
Folha - Por que Gil e os Mutantes cantam "Manoel, pára de encher" em "Pega a Voga, Cabeludo"?
Barenbein -
Eu sempre fui meio cricri. Com a liberdade que eu tinha com eles, eu era o chato, o cricri. No ensaio, nasceu o vocal, foi brincadeira de estúdio. Só vim a saber depois de pronto. Comecei a rir, o que ia fazer?
Folha - Ronnie Von fez um disco tropicalista. Ele era tropicalista?
Barenbein -
Esse processo de rotular é meio complicado, não sei. Tropicalistas para mim são as pessoas que estão no disco-manifesto. Se for partir para outro lado, Elis era uma das mais tropicalistas, estava sempre à frente. Ela chegou a combinar comigo um disco, queria o mesmo time, o Duprat. Por alguma razão que não sei e nunca quis perguntar, uma semana depois mudou de idéia.
Folha - Por que saiu da Philips?
Barenbein -
Saí em 71, porque queria abrir novos caminhos para mim -de novo a coceira de criar. Deixei de ser diretor artístico para ser assistente de produção na Itália, começar tudo do zero. Já eram dois, três anos fazendo a mesma coisa, queria outro caminho, por mais criativos que eles fossem.
Fiquei dois anos na Itália e voltei à Philips por convite do André Midani. Depois voltei para a RGE com esse projeto, de um cast todo voltado para música em inglês. Aí estouraram Harmony Cats, David Robinson (que era o Dudu França), Christian e Ralf com um monte de nomes, Jessé como Tony Stevens, Fábio Jr. como Mark Davis.
Folha - Existe lógica artística em partir do tropicalismo e chegar às Harmony Cats?
Barenbein -
Veja bem, no meu conceito era diferente. Eu não ia mais gravar Milton, Djavan, Simone e manter meu nome. Ia desenvolver um trabalho profissional que me permitisse procurar algo diferenciado. Era natural que acontecesse isso. Caso contrário, poderia estar lá até hoje rodando a mesma bola. E o que fiz lá está aí para sempre, Caetano, Gil, Gal.
Folha - O que aconteceu com você nos anos 80?
Barenbein -
Me afastei do disco. Era aquela coisa de cinco cadeiras e seis pessoas para sentar. Levantei da RGE, alguém sentou, e eu fiquei em pé. Foi circunstancial, não queria me afastar.
Folha - Por que alguém que fez tanta coisa de repente não tem espaço? Você fez algo errado?
Barenbein -
São coisas do Brasil. Que eu saiba, não fiz nada errado. O que fiz de errado foi, ao sair, tentar ser produtor independente. Perdi um apartamento. Aí me desiludi. Tive problemas financeiros, foram praticamente cinco anos desempregado. Sobrevivi de bico, minha mulher tinha um salão de cabeleireiro e depois uma butique.
Acabei formando uma equipe e criei a ABS, uma produtora de vídeo que vive legal há dez anos. Fazemos clipes, vídeos institucionais, o programa "Clube Irmão Caminhoneiro Shell".
Voltei para disco em 97 -tenho, com outros sócios, a RDS, uma gravadora que só trabalha com produtos independentes. Não produzo nada, só trago produtos prontos. Sou desesperado para pegar projetos novos, diferenciados, de gente nova e criativa.
Acho isso necessário, era o que acontecia antes. Começa, vai segmentando, daqui a três discos está no patamar. Aí, daqui a 30 anos ainda vamos estar falando dos caras, não foram criados como produtos descartáveis.
Folha - Você mantém algum tipo de relação com os tropicalistas?
Barenbein -
Tenho mais com Tom Zé, Duprat. Dos outros, a distância entre o que faço e o que eles fazem é muito grande. Gil me convidou para o "Acústico", eu fui, me tratou muito bem. Se a gente se encontra, a amizade vem na hora.
Caetano não vejo há uns 15 anos. Nunca consegui ir a um show dele em São Paulo. Eu odeio camarim, o mundo deles hoje é muito diferente do meu. São outras pessoas de relacionamento. Não é questão de estrelismo, mas começa a chegar gente e sou peixe fora d'água.



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