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GASTRONOMIA
Receita feita de impressões para desobedecer aos salpicos
NINA HORTA
Colunista da Folha
De vez em quando uma produtora de revista pede um cardápio para fotos. Vou protelando porque
sei a trabalheira, correrias escada
acima e escada abaixo, passar shoyu no pato para dourar, trocar a fatia de chocolate que suou, retirar o
sorvete que derreteu.
- A luz está boa, sobe aqui neste
banquinho para ver- diz o fotógrafo, e o pato que você fez está lá,
longe, muito pequeno e de cabeça
para baixo.
- Uhm...- resmunga a cozinheira.
Mas o fim não está próximo.
Agora é preciso mandar por fax as
receitas pormenorizadas, tintim
por tintim.
- Não dá para dizer pegue o pato, lave o pato, asse o pato?- faço-me de inocente.
E o pior é que sei, no fundo do coração eu sei, que a única receita é
esta de pegue o pato, lave o pato...
Quem precisa obedecer, como você e eu, às colherinhas, gotas, salpicos, nunca encontrará a essência
do pato, que ora é um ora é outro,
nunca o mesmo no tempo e no espaço, nem ele nem seus ingredientes, nem nós, nem nada.
"Aburrida" pela pressão da produtora, vem a grande tentação da
receita de um pato feito de impressões, de vivência do corpo, de artifícios da memória. Temos que entregar a receita ao nariz e à boca,
introjetar o pato, resolvê-lo sensorialmente e só depois levá-lo direto
à panela.
- Pegue um ramo de cheiros: de
preferência catados na infância urbana cheia de lotes vazios com terra esburacada e esturricada, montes de areia, pedaços de tijolos quebrados, pés de mamona de folhas
largas, cachimbinhos feitos do
caule, um primeiro gosto de perigo, pois o lote era vazio e a mamona venenosa.
Cheiros bem perto do corpo, de
algodão Bangu, rascante e permanente Toni.
Cheiro de rádio estalando, roupa
limpa recém-lavada, e a empregada passando enquanto escutava a
novelinha de Sarita Campos. E lá
pelas cinco ou seis horas era só um
cheiro de selva com o grito retumbante de Tarzan chamando as Janes em flor.
A vizinha apelidada de Natália, a
italianinha, recheava o pão com
azeite e alho, d. Hermínia fritava
alcachofras, Judith fazia gefilte
fish, Rutênio
era aviador e
trazia Coca-Cola com gosto
de sabão Aristolino, e dos
sobrados saía
um cheiro de
carne assada
de panela.
Não faltava
uma poeira
quente de sol, o
jogo suado de
amarelinha,
cheiro de borracha de pneu
de bicicleta, da
sua bicicleta
azul, alumínio
quente roçando as coxas e
patins riscando o cimento áspero e
afundando levemente o piche do
asfalto.
Cheiro do primeiro livro-presente no bolso do pai, de couro azul-marinho, trabalhado em escamas.
O melhor cheiro do mundo, o decisivo, em contraposição ao pior
cheiro do mundo, um cocô de gato
de estimação, perdido embaixo de
um armário decisivo também para
o sumiço do gato.
A mãe não tinha cheiro, não suava e usava Bois Dormant. O pai,
pura loção de barba e às vezes Cuir
de Russie.
O colégio cheirava a muitas camadas de tinta a óleo, massinha e
giz. E a lágrimas amargas choradas
e lambidas, inexplicáveis, quando
o piano era sacudido nas aulas de
canto por "Cachorrinho Está Latindo Lá no Fundo do Quintal".
Cheiro de café com leite engolido
às pressas, sanduíche de lancheira
e cheiro de fundo de mala com ciscos de borracha velha e lascas de
lápis apontados. Este último ressurge sempre no cominho seco das
receitas.
O trem mudava o cenário, cheiro
de máquina, ferro, fumaça, pó preto, metal desconjuntando, gemendo, chacoalhando, cheiro de trem
que atinge o cérebro.
E aí o Rio de Janeiro, apartamento de avó, escuro, velando papinhas de maçã e leite em pó. Os primeiros bafos de maresia e lixeira
de corredor.
A vastidão de Minas, craquelenta
ao sol, clara, aberta. Os rios de
águas claras que não se contaminam com o lodo, cheirosos frescos,
adolescentes rindo em burburinhos e brincos prateados de piabas. Enroscados nas pedras os bagres, estes cheirando à terra, bigodes levemente deprimidos.
E, debaixo das mangueiras velhas, a umidade do tronco escorregadio, as folhas apodrecendo no
chão, o gosto súbito de terebentina, de doce, de manchas pretas, a
gosma amarela repuxando as bochechas.
E os cheiros mais fortes, os de
sempre, permeando a roça, o caminho, a estrada; os cheiros de estrume, fogueira, pólvora, jasmim,
fogo apagado com água jogada nas
cinzas.
Estes são os ingredientes básicos
do "Pato com laranjinhas da China". Passemos ao modo de fazer...
E-mail: ninahort@uol.com.br
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