São Paulo, Sexta-feira, 07 de Maio de 1999
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GASTRONOMIA
Receita feita de impressões para desobedecer aos salpicos

NINA HORTA
Colunista da Folha

De vez em quando uma produtora de revista pede um cardápio para fotos. Vou protelando porque sei a trabalheira, correrias escada acima e escada abaixo, passar shoyu no pato para dourar, trocar a fatia de chocolate que suou, retirar o sorvete que derreteu.
- A luz está boa, sobe aqui neste banquinho para ver- diz o fotógrafo, e o pato que você fez está lá, longe, muito pequeno e de cabeça para baixo.
- Uhm...- resmunga a cozinheira.
Mas o fim não está próximo. Agora é preciso mandar por fax as receitas pormenorizadas, tintim por tintim.
- Não dá para dizer pegue o pato, lave o pato, asse o pato?- faço-me de inocente.
E o pior é que sei, no fundo do coração eu sei, que a única receita é esta de pegue o pato, lave o pato... Quem precisa obedecer, como você e eu, às colherinhas, gotas, salpicos, nunca encontrará a essência do pato, que ora é um ora é outro, nunca o mesmo no tempo e no espaço, nem ele nem seus ingredientes, nem nós, nem nada.
"Aburrida" pela pressão da produtora, vem a grande tentação da receita de um pato feito de impressões, de vivência do corpo, de artifícios da memória. Temos que entregar a receita ao nariz e à boca, introjetar o pato, resolvê-lo sensorialmente e só depois levá-lo direto à panela.
- Pegue um ramo de cheiros: de preferência catados na infância urbana cheia de lotes vazios com terra esburacada e esturricada, montes de areia, pedaços de tijolos quebrados, pés de mamona de folhas largas, cachimbinhos feitos do caule, um primeiro gosto de perigo, pois o lote era vazio e a mamona venenosa.
Cheiros bem perto do corpo, de algodão Bangu, rascante e permanente Toni.
Cheiro de rádio estalando, roupa limpa recém-lavada, e a empregada passando enquanto escutava a novelinha de Sarita Campos. E lá pelas cinco ou seis horas era só um cheiro de selva com o grito retumbante de Tarzan chamando as Janes em flor.
A vizinha apelidada de Natália, a italianinha, recheava o pão com azeite e alho, d. Hermínia fritava alcachofras, Judith fazia gefilte fish, Rutênio era aviador e trazia Coca-Cola com gosto de sabão Aristolino, e dos sobrados saía um cheiro de carne assada de panela.
Não faltava uma poeira quente de sol, o jogo suado de amarelinha, cheiro de borracha de pneu de bicicleta, da sua bicicleta azul, alumínio quente roçando as coxas e patins riscando o cimento áspero e afundando levemente o piche do asfalto.
Cheiro do primeiro livro-presente no bolso do pai, de couro azul-marinho, trabalhado em escamas. O melhor cheiro do mundo, o decisivo, em contraposição ao pior cheiro do mundo, um cocô de gato de estimação, perdido embaixo de um armário decisivo também para o sumiço do gato.
A mãe não tinha cheiro, não suava e usava Bois Dormant. O pai, pura loção de barba e às vezes Cuir de Russie.
O colégio cheirava a muitas camadas de tinta a óleo, massinha e giz. E a lágrimas amargas choradas e lambidas, inexplicáveis, quando o piano era sacudido nas aulas de canto por "Cachorrinho Está Latindo Lá no Fundo do Quintal". Cheiro de café com leite engolido às pressas, sanduíche de lancheira e cheiro de fundo de mala com ciscos de borracha velha e lascas de lápis apontados. Este último ressurge sempre no cominho seco das receitas.
O trem mudava o cenário, cheiro de máquina, ferro, fumaça, pó preto, metal desconjuntando, gemendo, chacoalhando, cheiro de trem que atinge o cérebro.
E aí o Rio de Janeiro, apartamento de avó, escuro, velando papinhas de maçã e leite em pó. Os primeiros bafos de maresia e lixeira de corredor.
A vastidão de Minas, craquelenta ao sol, clara, aberta. Os rios de águas claras que não se contaminam com o lodo, cheirosos frescos, adolescentes rindo em burburinhos e brincos prateados de piabas. Enroscados nas pedras os bagres, estes cheirando à terra, bigodes levemente deprimidos.
E, debaixo das mangueiras velhas, a umidade do tronco escorregadio, as folhas apodrecendo no chão, o gosto súbito de terebentina, de doce, de manchas pretas, a gosma amarela repuxando as bochechas.
E os cheiros mais fortes, os de sempre, permeando a roça, o caminho, a estrada; os cheiros de estrume, fogueira, pólvora, jasmim, fogo apagado com água jogada nas cinzas.
Estes são os ingredientes básicos do "Pato com laranjinhas da China". Passemos ao modo de fazer...

E-mail: ninahort@uol.com.br


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