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RODAPÉ
A rapsódia surrealista de Rosário Fusco
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
Conhecido como um importante poeta do modernismo mineiro, Rosário Fusco (1910-77) tem um obra em prosa que está ressurgindo aos poucos e possui poucos paralelos na literatura
brasileira. Em 2000, a editora
Bluhm, do Rio de Janeiro, relançou o romance "O Agressor", de
1943. Agora, a Ateliê Editorial publica um dos livros que Fusco deixou inédito, "A.S.A. - Associação dos Solitários Anônimos",
que poderíamos definir como
uma rapsódia surrealista.
Ao lado de Guilhermino César,
Ascânio Lopes e Enrique de Resende, Fusco foi um dos criadores
da revista "Verde", de Cataguases,
que procurou renovar o Modernismo de 22 com uma espécie de
nacionalismo dionisíaco, embriagado pela paisagem do sertão mineiro. Sua obra em prosa, que
coincide com a mudança para o
Rio de Janeiro nos anos 30, assinala uma ruptura com esse passado de militância estética.
Em "O Agressor", o guarda-livros David se esgueira como uma
sombra acuada pelas ruas da cidade, numa errância obsessiva
que reverbera as ruminações do
anônimo anti-herói de "Memórias do Subsolo", de Dostoiévski,
ou o rancor de Luís da Silva, o
narrador de "Angústia", de Graciliano Ramos.
Já em "A.S.A.", a ambiência alucinatória do romance de estréia se
radicaliza. Não há propriamente
trama, pois não há propriamente
personagens, mas apenas duas
máscaras ambulantes, Fulano e
Beltrano, que convivem com uma
série de figuras caricaturais: Sicrana (a mulher de Fulano), Boche
(alemão dono de uma cervejaria),
Perneta, Bermuda, o Mudo, o
Louro, o Arquiteto etc.
O "habitat" desses títeres é uma
cidade portuária, com cortiços e
terrenos baldios em que "homens
e mulheres semivestidos ferviam
mariscos em latas que teriam sido
de querosene". Uma atmosfera
inóspita e violentamente sensual,
cuja melhor tradução visual são as
gravuras soturnas de Goeldi:
"[Fulano] gastava um século para
levar o copo à boca: embebido no
mar, bebendo o mar... de repente
copiando o céu de um vertiginoso
azul: especial para místicos, invertidos em pane, astronautas e suicidas virtuais em olor de santidade ou de álcool, álcoois, alcalóides".
Cita-se com frequência Kafka
como um dos modelos de Rosário
Fusco. De fato, há semelhanças
entre a escrita protocolar do escritor tcheco (que "normaliza" o absurdo) e o tom cartorial do autor
mineiro (que o produz). Em Kafka, porém, há uma espécie de lei
oculta que governa o mundo de
personagens confinadas numa
realidade burocrática e obedientes a desígnios torturantes.
No caso de Fusco, são as personagens que criam suas leis, em
diálogos em que se discute e se negocia, em que se criam regulamentos e "prospecções metafísicas". Mas não se sabe, rigorosamente, a que se referem essas normas, qual o motivo dessa ladainha, o objeto dessa angústia: é o
mundo da esquizofrenia, em capítulos descontínuos povoados
por "clowns" verberando sobre o
nada, à maneira de Beckett, dos
rufiões visionários do argentino
Roberto Arlt e do ilogismo dos
surrealistas.
Num ensaio sobre "O Agressor"
publicado em "Brigada Ligeira",
Antonio Candido apontou o caráter artificial dessa a apropriação
dos surrealistas europeus, que
"não representam uma problemática vital para a inteligência
brasileira". Passados sessenta
anos do primeiro romance do escritor mineiro, essa preocupação
com a identidade nacional e com
um projeto civilizatório foi varrida de nosso horizonte literário e
político. "A.S.A." não é apenas o
desfecho da trajetória de Rosário
em direção a um subterrâneo
existencial, mas um romance de
antecipação. Como diz o narrador do livro, "num continente
descoberto por acaso, é natural
que o acaso impere".
A.S.A. - Associação dos Solitários Anônimos
Autor: Rosário Fusco
Editora: Ateliê
Quanto: R$ 32 (290 págs.)
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