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São Paulo, sábado, 07 de junho de 2003

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RODAPÉ

A rapsódia surrealista de Rosário Fusco

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Conhecido como um importante poeta do modernismo mineiro, Rosário Fusco (1910-77) tem um obra em prosa que está ressurgindo aos poucos e possui poucos paralelos na literatura brasileira. Em 2000, a editora Bluhm, do Rio de Janeiro, relançou o romance "O Agressor", de 1943. Agora, a Ateliê Editorial publica um dos livros que Fusco deixou inédito, "A.S.A. - Associação dos Solitários Anônimos", que poderíamos definir como uma rapsódia surrealista.
Ao lado de Guilhermino César, Ascânio Lopes e Enrique de Resende, Fusco foi um dos criadores da revista "Verde", de Cataguases, que procurou renovar o Modernismo de 22 com uma espécie de nacionalismo dionisíaco, embriagado pela paisagem do sertão mineiro. Sua obra em prosa, que coincide com a mudança para o Rio de Janeiro nos anos 30, assinala uma ruptura com esse passado de militância estética.
Em "O Agressor", o guarda-livros David se esgueira como uma sombra acuada pelas ruas da cidade, numa errância obsessiva que reverbera as ruminações do anônimo anti-herói de "Memórias do Subsolo", de Dostoiévski, ou o rancor de Luís da Silva, o narrador de "Angústia", de Graciliano Ramos.
Já em "A.S.A.", a ambiência alucinatória do romance de estréia se radicaliza. Não há propriamente trama, pois não há propriamente personagens, mas apenas duas máscaras ambulantes, Fulano e Beltrano, que convivem com uma série de figuras caricaturais: Sicrana (a mulher de Fulano), Boche (alemão dono de uma cervejaria), Perneta, Bermuda, o Mudo, o Louro, o Arquiteto etc.
O "habitat" desses títeres é uma cidade portuária, com cortiços e terrenos baldios em que "homens e mulheres semivestidos ferviam mariscos em latas que teriam sido de querosene". Uma atmosfera inóspita e violentamente sensual, cuja melhor tradução visual são as gravuras soturnas de Goeldi: "[Fulano] gastava um século para levar o copo à boca: embebido no mar, bebendo o mar... de repente copiando o céu de um vertiginoso azul: especial para místicos, invertidos em pane, astronautas e suicidas virtuais em olor de santidade ou de álcool, álcoois, alcalóides".
Cita-se com frequência Kafka como um dos modelos de Rosário Fusco. De fato, há semelhanças entre a escrita protocolar do escritor tcheco (que "normaliza" o absurdo) e o tom cartorial do autor mineiro (que o produz). Em Kafka, porém, há uma espécie de lei oculta que governa o mundo de personagens confinadas numa realidade burocrática e obedientes a desígnios torturantes.
No caso de Fusco, são as personagens que criam suas leis, em diálogos em que se discute e se negocia, em que se criam regulamentos e "prospecções metafísicas". Mas não se sabe, rigorosamente, a que se referem essas normas, qual o motivo dessa ladainha, o objeto dessa angústia: é o mundo da esquizofrenia, em capítulos descontínuos povoados por "clowns" verberando sobre o nada, à maneira de Beckett, dos rufiões visionários do argentino Roberto Arlt e do ilogismo dos surrealistas.
Num ensaio sobre "O Agressor" publicado em "Brigada Ligeira", Antonio Candido apontou o caráter artificial dessa a apropriação dos surrealistas europeus, que "não representam uma problemática vital para a inteligência brasileira". Passados sessenta anos do primeiro romance do escritor mineiro, essa preocupação com a identidade nacional e com um projeto civilizatório foi varrida de nosso horizonte literário e político. "A.S.A." não é apenas o desfecho da trajetória de Rosário em direção a um subterrâneo existencial, mas um romance de antecipação. Como diz o narrador do livro, "num continente descoberto por acaso, é natural que o acaso impere".


A.S.A. - Associação dos Solitários Anônimos
     Autor: Rosário Fusco Editora: Ateliê Quanto: R$ 32 (290 págs.)



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