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FERNANDO GABEIRA
Da espanhola à Tiazinha, a strip-tease de um vírus
No início dos 60, costumava
jantar num restaurante em Copacabana. Era a maneira de
consumir meu primeiro salário
regular no Rio. O restaurante
se chamava Campino e nele
jantava também o poeta Manuel Bandeira. Durante meses,
frequentamos o mesmo espaço.
Jamais o abordei, embora fosse
um dos poetas que iluminaram
minha adolescência. Sabia de
cor os versos de Pasárgada. E
gostava também de um poema
onde dizia que o aeroporto lhe
dava lições de ir e vir.
Cerca de 35 anos depois, Manuel Bandeira me veio de novo
à cabeça. Foi no auge de uma
febre trazida por essa gripe terrível de entrada de inverno.
Ninguém conhece como ele os
mistérios do pulmão humano.
Mas não foi essa solidariedade
térmica que me uniu ao velho
poeta e sim a idéia de que a gripe me deu lições de como as coisas mudam.
Quando temos de aprender a
mudança de tudo o que existe
com a própria mutação de um
vírus é porque estamos meio
perdidos no excesso de trabalho ou na suposta importância
histórica de nossas tarefas.
Sempre achei que gripe dura
três dias e que, se resistimos
bem às primeiras horas, podemos prosseguir nossa vida normal sem transtornos.
Vida normal significa viagens áreas, sistemas condenados de ar-condicionado e tudo
isso que enfrentamos no cotidiano.
No terceiro dia, quando tudo
parecia melhorar, sofri o grande baque e terminei uma semana na cama.
O mundo visto por quem tem
febre nunca é o mesmo. Parece
que há uma película separando
você dos outros. Uma reportagem sobre a conquista do Pólo
Ártico dói, um seriado do tipo
Malibu desmoraliza porque
você vê todo mundo mergulhando, mas não consegue se
desgrudar do edredon.
Mas o imperdoável mesmo é
minha ignorância sobre a gripe. O que achava uma eterna e
imutável chateação é na verdade objeto de estudo em mais de
200 laboratórios e demanda
uma troca de informações permanente entre 80 países, que
perseguem todo ano a vacina
ideal para as modalidades de
gripe em voga.
Ao contrário da espanhola,
onde se morreu tanto se sabendo tão pouco, a Internet permite hoje que você tenha uma
imagem 150 mil vezes ampliada do vírus que está dentro de
você. O que não atenua o mal-estar, mas, pelo menos, você
pode ter um quadro do inimigo, cuspir nele em caso de ódio
extremo: vírus contra vírus.
Pelo menos aprendi que a gripe de cada ano não é a mesma e
que as vacinas são produzidas,
exatamente, para tentar deter
as modalidades mais prováveis
da estação. E que muita gente
morre de gripe ou, pelo menos,
passa algumas semanas em
hospitais. A maioria é gente
idosa, mas, entre os idosos, certamente os teimosos como eu
acham que dá para seguir trabalhando e que, ao cabo de três
dias, tudo vai se normalizar.
Sempre que o inverno está
chegando -creio que é a época
mais perigosa- vou atrás da
minha vacina. As estatísticas
não garantem um êxito de
100%. Mas metade de chance
de escapar dela já compensa o
esforço, uma vez que os efeitos
colaterais são pequenos.
Mais do que isso, a cada inverno é possível saber se vem a
A ou a C, produzir inúmeros
cartazes tendo o vírus como o
tema central e cotejar dados
dos países envolvidos na troca
de informações.
Aqui no Brasil a gripe se chamou Tiazinha. De fato, suas
características sádicas sobressaíram neste ano. Mas a Internet já permite ao jornalismo
uma verdadeira revolução ainda não realizada. Se houvesse
um cruzamento permanente,
intenso e sobretudo inteligente
dos dados pesquisados em primeira mão com o mundo virtual, teríamos um produto novo
nas bancas.
Para os jornalistas pré-revolucionários é excitante ver juntos
ACM e Serra na mesma foto. É a
tática de lançar sempre as mesmas imagens, combinando-as
de inúmeras formas.
O tesouro que a virtualidade
oferece permanece inexplorado
pelos editores. Eles nos mantêm
visualmente em 1918, no tempo
da espanhola.
Isso parece uma reação de político. Argumentar, argumentar
e terminar culpando pela sua
gripe a culpada de sempre, que é
a mídia.
Manuel Bandeira me aconselharia mais grandeza nas febres. O problema é que a rede
abriu um caminho inesgotável
para os jornais e, em vez de trilhar esse caminho, eles se deixam levar um pouco pela desconfiança em relação ao novo.
Nos anos 60, foram criados departamentos de pesquisa que
consistiam em recortes armazenados em pastas e gente analisando esses recortes. Esse potencial foi multiplicado por milhões com a presença da net e
todos podem ter acesso a ela simultaneamente. São legiões de
departamentos de pesquisa que
seguem adormecidos.
Graças à minha completa ignorância sobre a gripe, consigo
pelo menos um rumo para voltar ao trabalho. O jornal do futuro será a mistura da realidade com o virtual, não duas realidades separadas.
Atchim.
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