São Paulo, segunda, 7 de junho de 1999

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FERNANDO GABEIRA
Da espanhola à Tiazinha, a strip-tease de um vírus

No início dos 60, costumava jantar num restaurante em Copacabana. Era a maneira de consumir meu primeiro salário regular no Rio. O restaurante se chamava Campino e nele jantava também o poeta Manuel Bandeira. Durante meses, frequentamos o mesmo espaço. Jamais o abordei, embora fosse um dos poetas que iluminaram minha adolescência. Sabia de cor os versos de Pasárgada. E gostava também de um poema onde dizia que o aeroporto lhe dava lições de ir e vir.
Cerca de 35 anos depois, Manuel Bandeira me veio de novo à cabeça. Foi no auge de uma febre trazida por essa gripe terrível de entrada de inverno. Ninguém conhece como ele os mistérios do pulmão humano. Mas não foi essa solidariedade térmica que me uniu ao velho poeta e sim a idéia de que a gripe me deu lições de como as coisas mudam.
Quando temos de aprender a mudança de tudo o que existe com a própria mutação de um vírus é porque estamos meio perdidos no excesso de trabalho ou na suposta importância histórica de nossas tarefas. Sempre achei que gripe dura três dias e que, se resistimos bem às primeiras horas, podemos prosseguir nossa vida normal sem transtornos.
Vida normal significa viagens áreas, sistemas condenados de ar-condicionado e tudo isso que enfrentamos no cotidiano.
No terceiro dia, quando tudo parecia melhorar, sofri o grande baque e terminei uma semana na cama.
O mundo visto por quem tem febre nunca é o mesmo. Parece que há uma película separando você dos outros. Uma reportagem sobre a conquista do Pólo Ártico dói, um seriado do tipo Malibu desmoraliza porque você vê todo mundo mergulhando, mas não consegue se desgrudar do edredon.
Mas o imperdoável mesmo é minha ignorância sobre a gripe. O que achava uma eterna e imutável chateação é na verdade objeto de estudo em mais de 200 laboratórios e demanda uma troca de informações permanente entre 80 países, que perseguem todo ano a vacina ideal para as modalidades de gripe em voga.
Ao contrário da espanhola, onde se morreu tanto se sabendo tão pouco, a Internet permite hoje que você tenha uma imagem 150 mil vezes ampliada do vírus que está dentro de você. O que não atenua o mal-estar, mas, pelo menos, você pode ter um quadro do inimigo, cuspir nele em caso de ódio extremo: vírus contra vírus.
Pelo menos aprendi que a gripe de cada ano não é a mesma e que as vacinas são produzidas, exatamente, para tentar deter as modalidades mais prováveis da estação. E que muita gente morre de gripe ou, pelo menos, passa algumas semanas em hospitais. A maioria é gente idosa, mas, entre os idosos, certamente os teimosos como eu acham que dá para seguir trabalhando e que, ao cabo de três dias, tudo vai se normalizar.
Sempre que o inverno está chegando -creio que é a época mais perigosa- vou atrás da minha vacina. As estatísticas não garantem um êxito de 100%. Mas metade de chance de escapar dela já compensa o esforço, uma vez que os efeitos colaterais são pequenos.
Mais do que isso, a cada inverno é possível saber se vem a A ou a C, produzir inúmeros cartazes tendo o vírus como o tema central e cotejar dados dos países envolvidos na troca de informações.
Aqui no Brasil a gripe se chamou Tiazinha. De fato, suas características sádicas sobressaíram neste ano. Mas a Internet já permite ao jornalismo uma verdadeira revolução ainda não realizada. Se houvesse um cruzamento permanente, intenso e sobretudo inteligente dos dados pesquisados em primeira mão com o mundo virtual, teríamos um produto novo nas bancas.
Para os jornalistas pré-revolucionários é excitante ver juntos ACM e Serra na mesma foto. É a tática de lançar sempre as mesmas imagens, combinando-as de inúmeras formas.
O tesouro que a virtualidade oferece permanece inexplorado pelos editores. Eles nos mantêm visualmente em 1918, no tempo da espanhola.
Isso parece uma reação de político. Argumentar, argumentar e terminar culpando pela sua gripe a culpada de sempre, que é a mídia.
Manuel Bandeira me aconselharia mais grandeza nas febres. O problema é que a rede abriu um caminho inesgotável para os jornais e, em vez de trilhar esse caminho, eles se deixam levar um pouco pela desconfiança em relação ao novo.
Nos anos 60, foram criados departamentos de pesquisa que consistiam em recortes armazenados em pastas e gente analisando esses recortes. Esse potencial foi multiplicado por milhões com a presença da net e todos podem ter acesso a ela simultaneamente. São legiões de departamentos de pesquisa que seguem adormecidos.
Graças à minha completa ignorância sobre a gripe, consigo pelo menos um rumo para voltar ao trabalho. O jornal do futuro será a mistura da realidade com o virtual, não duas realidades separadas.
Atchim.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.