São Paulo, sábado, 07 de julho de 2001

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CINEMA

Registros de Jan Harlan, amigo íntimo do cineasta, serão exibidos no canal pago HBO nos dias 8, 15 e 22 de julho

"Uma Vida Quadro a Quadro" disseca Kubrick

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

"A "hora mágica" é aquele momento maravilhoso do dia em que todo mundo está exausto e a luz está perfeita", diz o diretor de fotografia Douglas Milsome a certa altura do documentário "Stanley Kubrick - Uma Vida Quadro a Quadro".
Exatamente nessa hora fugaz, acrescenta Milsome, Kubrick (1928-99) exigia que fossem rodadas as complexas cenas de batalha de "Nascido para Matar" (1987), seu penúltimo filme.
Em outro depoimento eloquente, a atriz Shelley Duvall afirma que o cineasta, em geral uma pessoa amável, "podia fazer algumas coisas muito cruéis". Em seguida, um flagrante de filmagem de "O Iluminado" mostra Kubrick perdendo a paciência com a atriz, que, pela enésima vez, não conseguia fazer o que ele queria.
O proverbial perfeccionismo de Kubrick, ilustrado por episódios como esses, é um dos eixos temáticos de "Stanley Kubrick - Uma Vida Quadro a Quadro".
Realizado por Jan Harlan, amigo íntimo do cineasta e uma espécie de curador informal de sua obra, o documentário é narrado por Tom Cruise e divide-se em três partes de 50 minutos cada, que o canal por assinatura HBO começa a exibir amanhã.
Uma das virtudes do trabalho de Harlan é tratar o aspecto obsessivo da personalidade de Kubrick não como uma esquisitice, mas como um componente essencial de seu método criativo. Ou seja, o documentário não está interessado na "loucura" de Kubrick, mas na sua genialidade.

Talento dissecado
O talento artístico do cineasta é evidenciado no documentário em várias frentes. Depoimentos de colaboradores esmiúçam os métodos inventivos do diretor. Cineastas peso pesado (Martin Scorsese, Woody Allen, Steven Spielberg) falam do caráter único de seu cinema.
Por fim, trechos bem escolhidos dos principais filmes de Kubrick não deixam dúvidas sobre sua grandeza.
Como se trata também de um retrato afetivo, há belos depoimentos de parentes (irmã, viúva, filhas) e preciosos filmes domésticos, em que Kubrick, ainda menino, está dançando e tocando piano com a irmã ou, já adulto, ouve as filhas acusarem-no de tirano.
Para quem gosta de cinema e se interessa pelos meandros de seu artesanato, o documentário é um pequeno banquete.
Um assunto abordado em detalhe, por exemplo, é a célebre iluminação à vela de "Barry Lyndon", para a qual Kubrick recorreu a antigas câmeras Mitchell BNC adaptadas para usar lentes Zeiss empregadas pela Nasa nas fotografias de satélite.
Outro ponto alto, nesse aspecto, é o breve "making of" das famosas cenas do menino andando de triciclo pelos corredores do hotel de "O Iluminado". "Kubrick praticamente inventou a "steadycam" ali", diz um entusiasmado Martin Scorsese.

Recepção equivocada
O documentário pode ser visto também pelo viés da dificuldade de Kubrick em ser entendido por seus contemporâneos.
A recepção a "2001 - Uma Odisséia no Espaço", por exemplo, foi catastrófica. Algumas frases de jornais mostradas no documentário: "O maior filme amador já feito", "Um filme monumentalmente sem imaginação", "Provavelmente a trama mais redundante de todos os tempos".
O próprio Woody Allen confessa que só percebeu alguma coisa em "2001" a partir da terceira visão. "Tive de admitir que a cabeça dele estava muito à frente da minha", diz, humildemente.
Mais grave foi o caso de "Laranja Mecânica". A imprensa (sobretudo a britânica) passou a associar ao filme todos os crimes cometidos por jovens, e a pressão foi tamanha que o próprio Kubrick resolveu tirá-lo de cartaz, no auge do sucesso, numa decisão inédita na história do cinema.
Uma falha do documentário é não esclarecer se o cineasta retirou o filme por causa das ameaças que estava sofrendo ou por temer que, de fato, ele estivesse alimentando a violência.

Projetos frustrados
Outro assunto interessantíssimo abordado apenas de passagem são os projetos abortados de Kubrick: um filme sobre Napoleão e "Aryan Papers", inspirado no livro "Infância de Mentiras", de Louis Begley.
Do primeiro, o diretor desistiu quando o russo Sergei Bondarchuk lançou seu "Waterloo" (1971), estrelado por Rod Steiger. Já "Aryan Papers" foi abandonado por causa de "A Lista de Schindler" (1993), de Spielberg, cujo tema era semelhante.
Curiosamente, foi a Spielberg que o cineasta acabou confiando seu último projeto, "Inteligência Artificial", para o qual já havia feito complexos "storyboards".
No documentário, o diretor de "Indiana Jones" diz que Kubrick lhe propôs a direção do filme com a seguinte justificativa: "Ele tem mais a ver com a sua sensibilidade do que com a minha". Era o que temíamos.

Stanley Kubrick - Uma Vida Quadro a Quadro
Stanley Kubrick - A Life in Pictures
    
Direção: Jan Harlan
Produção: EUA/Inglaterra
Quando: dias 8, 15 e 22 de julho, às 22h, no canal pago HBO



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