São Paulo, sábado, 07 de julho de 2001

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WALTER SALLES

O erotismo volta à tona na literatura e no cinema europeus

Há sinais por todos os lados. Na pintura, no cinema, na fotografia e na literatura. Depois do conservadorismo dos anos 80 e 90, volta-se a falar da nudez dos corpos, de desejo e de erotismo. O jornal francês "Le Monde" define o momento como um "violento e salutar retorno ao real, em oposição à amnésia imposta -e aceita- nas últimas décadas".
Não que o nu estivesse ausente da vida contemporânea. Ao contrário, foi banalizado mundo afora pela publicidade, que disseminou imagens de corpos "asseptizados", retocados digitalmente, para vender todo tipo de produto. Co(r)pos plásticos. O efeito dessa apropriação indébita foi perverso: cada vez mais nus, cada vez menos nudez.
Pelo menos na Europa, a reação já se faz sentir. "Intimidade", o longa de Patrice Chéreau que ganhou o último Festival de Berlim, é um dos filmes que anunciam essa transformação. A trama é simples. Um homem e uma mulher encontram-se às quartas-feiras para transar. No início, um não conhece nada da vida do outro. Respondem apenas a um desejo vital. As cenas de sexo são filmadas sem subterfúgios, de forma seca e direta. Ao contrário de Lars von Trier, que contradisse os preceitos do Dogma -que ajudou a criar- usando atores pornôs para as cenas de penetração em "Os Idiotas", Chéreau filma os seus atores de forma corajosa e visceral. São corpos comuns, vistos sem sensacionalismo.
Outros filmes recentes vão na mesma direção: "Romance", de Catherine Breillat, e "A Vida de Jesus", de Bruno Dumont. Esses filmes retiram o sexo do escaninho ao qual ele estava relegado, o universo dos filmes "X", e o reintegram ao cotidiano.
A literatura não fica atrás. Graças à sua honestidade crua, um relato autobiográfico recentemente publicado na França tornou-se um surpreendente sucesso editorial: "A Vida Sexual de Catherine M.". Sem mistificações e sem procurar chocar o leitor, Catherine Millet expõe, em um livro extremamente bem escrito, como o sexo com parceiros diferentes se tornou parte da sua vida. É um texto preciso, revelador e inesperadamente plácido.
A autora não se esconde atrás de um pseudônimo. Poderia. Catherine Millet é a editora da influente revista "Art Press". O que a motivou a escrever o livro? Um desejo de desafiar preconceitos. "Pela primeira vez, alguém fala da origem do prazer sem voyeurismo ou proselitismo, fugindo da comédia das aparências", disse recentemente o filósofo Philippe Sollers.
Para sacudir ainda mais o moralismo vigente, "A Vida Sexual de Catherine M." foi publicado na França ao mesmo tempo em que um livro de fotografias intitulado "Légendes de Catherine M.". São nus de Millet realizados durante 30 anos por seu companheiro, o crítico de arte Jacques Henric. Nele, Henric descreve sua amante como "uma mulher livre, sem sentimento de culpa, que sempre soube ir além do pudor". A representação que ele faz de Catherine não é idealizada. As fotos têm uma simplicidade bressoniana. Nenhum efeito de luz que possa dar uma qualidade acadêmica às imagens é utilizado. Um relato fotográfico tão essencial e direto quanto o livro de Millet.
A mesma tendência pode ser sentida na pintura, com o reconhecimento do trabalho de uma jovem inglesa, Jenny Saville. Ela mostra corpos de pessoas comuns, em telas gigantescas. Saville foi uma das principais atrações de "Sensations", exposição apresentada em Nova York no ano passado. Indo em direção oposta aos exercícios conceituais que dominaram as artes plásticas nos últimos anos, os corpos nus radicalmente imperfeitos de Jenny Savil- le injetam realismo nos espaços brancos, higiênicos, onde eles são mostrados. Saville não está sozinha. Outros pintores contemporâneos caminham na mesma direção, como Eric Fischl e Vincent Corpet.
Ainda na pintura, a retrospectiva parisiense dos quadros e desenhos eróticos de Picasso tem sido visitada por um número impressionante de pessoas. Jovens e menos jovens têm acesso a uma obra precursora, realizada por um artista que via o sexo como parte do seu dia-a-dia. Percorrendo essa exposição ou assistindo-se a "Intimidade", tem-se a impressão de que o público também mudou. Não há, de um lado ou do outro do espelho, uma preocupação voyeurística com o tema. Não são só os artistas que falam hoje de sexo com transparência, sem artifícios. O público reage da mesma forma.
Estamos distantes dos anos em que filmes tão extraordinários quanto "O Império dos Sentidos", de Nagisa Oshima, eram considerados "pornográficos" e, por isso, censurados em diversos países do mundo -no Brasil, o filme de Oshima só chegou ao público com aquelas inomináveis bolinhas pretas que tapavam as partes do corpo consideradas impróprias pelos defensores da tradição, da família e da castidade.
Melhoras à vista? Nem tanto. De tapinha em tapinha, de garrafinha em garrafinha, tem-se a impressão de que, aqui nos trópicos, estamos por enquanto reduzidos a um processo de infantilização (e mercantilização) do sexo. Já nos Estados Unidos há um claro retrocesso em curso. A exposição de Picasso, por exemplo, não visitará a América conservadora de George Bush. Segundo o "Le Monde", por pressão de todo tipo de associações religiosas ou de defesa da moral e dos bons costumes que pululam por lá. A batalha só faz começar.



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