São Paulo, quarta-feira, 07 de julho de 2004

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ANÁLISE

Visão invertida marca retrato da história

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Apesar de encurtada, a incursão de "Senhora do Destino" na seara do docudrama histórico repercutiu na "Veja", na Folha, em casa.
Por mais diversas que sejam essas fontes de opinião, elas concordam em um ponto: as seqüências que retrataram a repressão nas ruas do Rio de Janeiro foram excessivamente violentas.
As interpretações variam. Para Sheila Schvarzman, com a representação pesada dos eventos de então, a Rede Globo estaria buscando se redimir do apoio dado ao regime na época.
Ricardo Valladares observa que o exagero não corresponde à verdade histórica, já que, como afirma o próprio autor da novela, o dia do AI-5, um 13 de dezembro, teria sido estranhamente calmo.
Minha mãe e minha empregada mudaram de canal ou desligaram a TV para não ver cenas cinzentas de bombas, estupros e violações várias.
O drama daquela mãe recém-chegada à cidade grande, prestes a ter a filha bebê seqüestrada, envolvida em uma guerra civil que não houve, não colou.
Cada uma dessas explicações é ao menos um pouco verdadeira. A soma delas, acrescida da interpretação artificial de Marília Gabriela, talvez explique a abreviação da primeira parte da novela.
Em vez de terminar na quinta, o flashback acabou já no capítulo de quarta-feira, dando lugar a um salto de 20 anos para um dia tão esticado e cheio de acontecimentos que durou dois capítulos inteiros. Visões conspiratórias à parte, a arritmia da primeira semana pode ter a ver com uma rejeição do público. Afinal, aquelas cenas eram mesmo difíceis de assistir.
A história muitas vezes é contada com olhos do presente. Nesse caso, houve uma curiosa inversão. O Nordeste miserável da seca, que na década de 60 exportou contingentes significativos de sua população para metrópoles sulistas, apareceu nas lentes nostálgicas de hoje, abundantemente irrigado pelas fartas águas do rio São Francisco.
Já a ex-capital da República, na época imaginada como oásis de glamour, ganhou a cara que ela tem hoje, de palco do terror.
Talvez o público, que muitas vezes é bem mais sábio do que se imagina, tenha achado inverossímil essa transferência, para o passado, dos terrores do presente.


Esther Hamburger é antropóloga e professora da ECA-USP


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