São Paulo, segunda, 7 de julho de 1997.



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VÍDEO
'Ondas do Destino' é cinema-redemoinho

ALCINO LEITE NETO
Editor do Mais!

Cinco minutos de "Ondas do Destino" valem os últimos cinco anos do cinema brasileiro. Liberdade. Provocação. Desassossego. Precisão. Ousadia. Urgência. Vigor. Paixão. Em um mote: cinema.
Sai agora a versão em vídeo do filme. É um arremedo do original em cinemascope. Não nas TVs, mas nas telas, o extraordinário filme do diretor dinamarquês Lars von Trier é um redemoinho de olhares e gestos, de palavras e sensações, um tumulto de acontecimentos e "desacontecimentos".
Um redemoinho calculado, se se pode dizer, em que a autonomia da interpretação (quase um improviso), a disponibilidade da câmera (sempre na mão) e a irrupção dos sentimentos criam um complexo sistema de colisões, entrelaçamentos, conflitos -um panorama inteiro do belicoso ato de filmar.
A fotografia deste filme é toda uma questão para o cinema atual.
Comandada pelo excelente Robby Müller (diretor de fotografia de Wim Wenders), ela é mais que um emaranhado de angustiosas influências (Cassavettes, Godard...). É um desafio permanente ao diretor e ao espectador.
A série infinita de planos movediços não deixa nada se estabilizar, transfigurando num relance o banal em sublime e este em banal etc. etc., como se a beleza fosse obra de um desvio, de um deslocamento, de um desequilíbrio. A beleza instável, instantânea, feita de fulgurações. Efêmera e atribulada.
E tenha-se atores como estes! Emily Watson (como Bess McNeil) é um milagre da expressão -de uma expressão vazia (a psicologia dificilmente a alcança), no limite do caricato, com seus olhos quase animalescos clamando por transcendência.
Stellan Skarsgard (Jan), Katrin Cartlidge (Dodo), Sandra Voc (a mãe) fazem o contraponto realista ao neo-expressionismo kitsch de Watson. Pulsam nervosamente sua presença, como se tivessem saído de uma "soap opera" e buscassem lugar em um filme de Carl Dreyer (dinamarquês como von Trier e sua influência assumida).
Pois Bess McNeil é uma garota não muito "boa da cabeça", que costuma conversar com Deus. Nos anos 70, vive num fim de mundo da Escócia e no centro de uma comunidade religiosa puritana.
Resolve casar-se com o "forasteiro" Jan, por quem é iniciada no amor. O amor de Bess não tem limites, e é todo físico -o corpo, a voz, o pênis, o ronco de Jan.
Um dia, Jan sofre um acidente. Imobilizado no hospital, pede a Bess que ela transe com outros homens e conte tudo a ele, para que ele não se esqueça como se faz amor e possa, enfim, salvar-se da morte. Bess levará às últimas consequências a proposta: é a sua busca de um milagre, ao mesmo tempo que seu sacrifício.
Ninguém nos engana: esse é um enredo de melodrama, como tantos no cinema -"um melodrama erótico", afirmou Lars von Trier, 41 anos, que recebeu por esse filme o Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes em 1996.
Buñuel, que explorou como poucos o melodrama, talvez visse na história um tortuoso processo de "dessublimação" sexual, seguido de uma perversa autopunição. Feitas as contas, a trama quem sabe lhe rendesse um irônico quadro do desejo feminino, com algumas estocadas anti-religiosas. Mas são tempos "pós-buñuelianos", "pós-irônicos".
Von Trier (diretor de "O Elemento do Crime"), filho de ateus, converteu-se ao catolicismo há alguns anos, ao se casar.
"Ondas" está confusamente impregnado de idéias fortes do cristianismo, tais como milagre, amor, fé, culpa, redenção. De uma certa ótica, faria o júbilo de um padre cinéfilo, incluído aí o gozo pelo desenlace trágico do filme.
Mas que ninguém se deixe levar pelos encantatórios chocalhos religiosos. Visto da superfície, "Ondas do Destino" é uma obra cujo humor exige nossa crença e cuja tragédia convoca a alegria. Pois haverá outra coisa de que trate esse filme senão da fé no mundo, do milagre do desejo, da dádiva no amor e da redenção da palavra?

Filme: Ondas do Destino Produção: Dinamarca/França, 1996, 159 min. Direção: Lars von Trier Com: Emily Watson, Stellan Skarsgard Lançamento: Flashstar (011/255-9911)






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