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VÍDEO
'Ondas do Destino' é cinema-redemoinho
ALCINO LEITE NETO
Editor do Mais!
Cinco minutos de "Ondas do
Destino" valem os últimos cinco
anos do cinema brasileiro. Liberdade. Provocação. Desassossego.
Precisão. Ousadia. Urgência. Vigor. Paixão. Em um mote: cinema.
Sai agora a versão em vídeo do
filme. É um arremedo do original
em cinemascope. Não nas TVs,
mas nas telas, o extraordinário filme do diretor dinamarquês Lars
von Trier é um redemoinho de
olhares e gestos, de palavras e sensações, um tumulto de acontecimentos e "desacontecimentos".
Um redemoinho calculado, se se
pode dizer, em que a autonomia da
interpretação (quase um improviso), a disponibilidade da câmera
(sempre na mão) e a irrupção dos
sentimentos criam um complexo
sistema de colisões, entrelaçamentos, conflitos -um panorama inteiro do belicoso ato de filmar.
A fotografia deste filme é toda
uma questão para o cinema atual.
Comandada pelo excelente
Robby Müller (diretor de fotografia de Wim Wenders), ela é mais
que um emaranhado de angustiosas influências (Cassavettes, Godard...). É um desafio permanente
ao diretor e ao espectador.
A série infinita de planos movediços não deixa nada se estabilizar,
transfigurando num relance o banal em sublime e este em banal etc.
etc., como se a beleza fosse obra de
um desvio, de um deslocamento,
de um desequilíbrio. A beleza instável, instantânea, feita de fulgurações. Efêmera e atribulada.
E tenha-se atores como estes!
Emily Watson (como Bess
McNeil) é um milagre da expressão -de uma expressão vazia (a
psicologia dificilmente a alcança),
no limite do caricato, com seus
olhos quase animalescos clamando por transcendência.
Stellan Skarsgard (Jan), Katrin
Cartlidge (Dodo), Sandra Voc (a
mãe) fazem o contraponto realista
ao neo-expressionismo kitsch de
Watson. Pulsam nervosamente
sua presença, como se tivessem
saído de uma "soap opera" e buscassem lugar em um filme de Carl
Dreyer (dinamarquês como von
Trier e sua influência assumida).
Pois Bess McNeil é uma garota
não muito "boa da cabeça", que
costuma conversar com Deus. Nos
anos 70, vive num fim de mundo
da Escócia e no centro de uma comunidade religiosa puritana.
Resolve casar-se com o "forasteiro" Jan, por quem é iniciada no
amor. O amor de Bess não tem limites, e é todo físico -o corpo, a
voz, o pênis, o ronco de Jan.
Um dia, Jan sofre um acidente.
Imobilizado no hospital, pede a
Bess que ela transe com outros homens e conte tudo a ele, para que
ele não se esqueça como se faz
amor e possa, enfim, salvar-se da
morte. Bess levará às últimas consequências a proposta: é a sua busca de um milagre, ao mesmo tempo que seu sacrifício.
Ninguém nos engana: esse é um
enredo de melodrama, como tantos no cinema -"um melodrama
erótico", afirmou Lars von Trier,
41 anos, que recebeu por esse filme
o Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes em 1996.
Buñuel, que explorou como
poucos o melodrama, talvez visse
na história um tortuoso processo
de "dessublimação" sexual, seguido de uma perversa autopunição. Feitas as contas, a trama quem
sabe lhe rendesse um irônico quadro do desejo feminino, com algumas estocadas anti-religiosas. Mas
são tempos "pós-buñuelianos",
"pós-irônicos".
Von Trier (diretor de "O Elemento do Crime"), filho de ateus,
converteu-se ao catolicismo há alguns anos, ao se casar.
"Ondas" está confusamente impregnado de idéias fortes do cristianismo, tais como milagre,
amor, fé, culpa, redenção. De uma
certa ótica, faria o júbilo de um padre cinéfilo, incluído aí o gozo pelo
desenlace trágico do filme.
Mas que ninguém se deixe levar
pelos encantatórios chocalhos religiosos. Visto da superfície, "Ondas do Destino" é uma obra cujo
humor exige nossa crença e cuja
tragédia convoca a alegria. Pois
haverá outra coisa de que trate esse
filme senão da fé no mundo, do
milagre do desejo, da dádiva no
amor e da redenção da palavra?
Filme: Ondas do Destino
Produção: Dinamarca/França, 1996, 159
min.
Direção: Lars von Trier
Com: Emily Watson, Stellan Skarsgard
Lançamento: Flashstar (011/255-9911)
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