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A BAHIA DE JORGE
O antropólogo da terra da mestiçagem
Grande divulgador da
idéia da miscigenação,
Jorge Amado fez de sua experiência particular um modelo de "ser brasileiro"
LILIA MORITZ SCHWARCZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Jorge Amado nunca quis ser antropólogo, mas sempre o foi sem
querer. Suas personagens são pessoas das ruas de Salvador, a Bahia
que descreveu foi aquela que o
pintor Carybé encontrou em Jubiabá (1935) e se deixou ficar; o
mundo que criou na verdade já
nasceu criado.
Grande pregador da idéia da
mestiçagem, Jorge Amado fez de
sua experiência particular um
modelo de "ser brasileiro".
Oriundo de famílias enriquecidas
pelo cacau, o escritor, sem jamais
ter deixado o seu universo cultural, foi de encontro a outro. Nesse
novo cenário está o cais de Salvador, o candomblé, a capoeira, as
festas religiosas, os heróis de cada
dia. É assim que em seus livros,
sem abandonar o mundo dos coronéis -como em "Menino Grapiúna" (1981), ou "Tereza Batista
Cansada da Guerra" (1972)-,
Jorge Amado adiciona um novo
tempero dado pelo cotidiano
mestiço da Bahia.
Fortemente influenciado pela
geração da "Academia dos Rebeldes" -esses jovens meninos que
com seus 16 anos experimentavam a realidade para entender a
literatura-, Jorge Amado acabou sendo porta-voz de uma
grande reviravolta. Com efeito,
até os anos 30, as elites intelectuais
nacionais eram profundamente
influenciadas por teorias raciais
que viam com descrédito o sangue negro que corria em nossas
veias, e ainda mais a mestiçagem.
Pensadores como Silvio Romero, Tobias Barreto e Euclydes da
Cunha entendiam o cruzamento
racial como fator de desequilíbrio
e de degeneração; para não falar
de Nina Rodrigues, médico radicado na Bahia, que acabou virando personagem de Jorge Amado,
em "Tenda dos Milagres" (1969).
Foi só após os anos 30 que deixamos de pensar que éramos gregos, latinos e espanhóis e passamos -sobretudo a partir da divulgação da obra de Gilberto
Freyre- a falar sobre as virtudes
e a originalidade da brasilidade.
Tal qual um verdadeiro passe de
mágica, de suprema mácula a
mestiçagem extremada existente
no país passava a representar um
modelo de convivência harmoniosa, um exemplo a ser seguido.
Mas, se Freyre foi o "pai da idéia",
Jorge Amado foi seu grande artista. Em seus livros, tudo parece ter
resultado da mistura: as culturas,
as religiões, os sangues das raças.
Quase como um panfleto contra
o preconceito, Amado vai expondo as armas contra o racismo: a
mistura de raças e de credos. Mais
eficientes do que um bom manual, seus romances ao mesmo
tempo em que prendem o leitor
na trama o transportam para o
polêmico terreno do sincretismo
religioso, que o autor tanto advoga. É então que o Oba de Xangô de
Jorge Amado mistura materialismo com fetichismo e revela que o
encontro de credos pode levar ao
surgimento de uma nova religião.
Em "Tenda dos Milagres"
(1969), por exemplo, Jorge Amado apresenta não só a violência
dos brancos, diante desses rituais
de origem africana, como oferece
o ingresso para um outro mundo,
onde a mistura não é só de raças,
mas também de religiões.
Mas ele é mesmo o grande divulgador da mestiçagem. Em suas
obras ela é tão evidente que muitas vezes não precisa ser afirmada.
Todos sabem que Tereza Batista é
mulata, assim como Tieta, e que
Dona Flor é cabo-verde (essa mistura particular de branco com negro e índio), mas não é o autor
que usa os termos como definição. No seu universo parecem não
caber classificações que descrevem a cor, mas não a relação; que
delatam exclusivamente a violência sem falar da convivência.
O que Jorge etnógrafo encontrou na Bahia foi um mundo
complicado de ser afirmado, mas
fácil de ser reconhecido. Uma certa brasilidade que, se não pode ser
entendida de forma absoluta, ajuda a pensar que há uma determinada especificidade na nossa convivência racial e mesmo no tipo
de preconceito aqui existente.
Convivência não quer dizer ausência de conflito; mistura não é
sinônimo de falta de hierarquia.
Ao contrário, esse universo complexo está todo lá: a pobreza, os
coronéis e seus jagunços, a boemia, a religião que mistura santos
católicos com orixás africanos.
Assim como é certo que a mistura, seja cultural, religiosa ou
biológica, ainda não se realizou
entre nós de forma harmoniosa, é
evidente que Amado -agora xamã- nos confunde com o mistério da literatura. Quem embarcar
nessa viagem terá dificuldade em
dizer quando começa o mito e se
apaga a realidade ou quando a vida real vira metáfora. Na verdade,
pouco importa.
Lilia Moritz Schwarcz é professora do
departamento de antropologia da USP e
autora de, entre outros, "As Barbas do
Imperador: Dom Pedro 2º, um Monarca
nos Trópicos" (Companhia das Letras,
1998)
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