São Paulo, segunda-feira, 07 de agosto de 2006

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GUILHERME WISNIK

O rei do espaço infinito


Atualmente, qualquer garoto pode baixar imagens do Pentágono para ilustrar seus jogos de batalha-naval

O QUE mais espanta na experiência de navegação pelo Google Earth é o salto vertiginoso entre as escalas. Isto é, o trânsito entre o zoom sobre qualquer ponto do espaço (uma casa em lote urbano, ou isolada no deserto, por exemplo), e a visão global do planeta, incluindo-se, nesse intervalo, todas as infinitas mediações entre uma coisa e outra. É interessante que, à medida que esse vasto e rico material de fotos de satélite se torna acessível a um público amplo pela internet, um modo de raciocinar que era antes restrito a arquitetos, geógrafos e cartógrafos começa a se generalizar. Refiro-me à abstração dos mapas e plantas, à capacidade de decodificar informações espaciais em suporte bidimensional, e, mais do que isso, de compreender o território como uma unidade contínua feita de inúmeras particularidades.
Será que a positividade com que recebemos acontecimentos novos como o Google Earth espelha a pacificação geral da era da globalização? É possível. Hoje, a suspeita de uma constante vigia da vida privada através de rastros deixados na internet é, de todo modo, mais branda do que a paranóia do controle panóptico do mundo dos tempos da Guerra Fria. E se até ontem os arquivos de aerofotogrametria não eram autorizados a vender fotos em que aparecessem vistas de portos ou aeroportos, atualmente qualquer garoto pode baixar imagens do Pentágono ou do Kremlin para ilustrar seu jogo de batalha-naval.
Porém, a minha hipótese é que fenômenos como o Google Earth propõem situações marginais a enquadramentos ideológicos diretos, em aproximação com questões que só a arte tem sido capaz de formular. Para isso, valho-me da comparação com o "Aleph" de Jorge Luis Borges. O aleph, palavra que dá nome a um conto seu, assim como a máquina do mundo de Drummond, proporciona uma visão epifânica do universo. É um ponto mirífico (com dois ou três centímetros de diâmetro) que concentra, como que por mágica, todos os pontos do planeta, sem sobreposição ou transparência.
No conto, um pretenso poeta argentino convive secretamente com o aleph que descobre existir no canto escuro do sótão de sua casa. Por isso, se lança à tarefa grandiosa de "versificar toda a redondez do planeta" num infindável e fastidioso poema épico em que visita e descreve todos os lugares da Terra. Sendo que, no momento do relato, não havia ainda ultrapassado pouco mais do que alguns hectares do Estado de Queensland, na Austrália, e um quilômetro do curso do rio Ob, localizado na Sibéria.
Se, através do aleph, o leitor de Borges mergulha na vertigem da totalidade concentrada em um único ponto, o poeta do conto, por sua vez, parece condenado a uma representação sempre fragmentária desse todo inapreensível. Guardadas as devidas proporções, o Google Earth indica o salto intermitente de um pólo ao outro, na ambição totalizante da arte. Ambição humana, trágica, como a de Hamlet, quando declara: "podia ver-me encerrado em uma casca de noz e sentir-me o rei do espaço infinito..., não tivesse eu sonhos atormentados".

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