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Mito e realidade da liberdade de imprensa
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Duas quimeras do ofício: a liberdade de imprensa e o compromisso com a verdade. Excetuando os detalhes miúdos do
dia-a-dia ("o caixão baixou à
sepultura às cinco horas da
tarde" pode ser uma informação verdadeira), a verdade
com a qual o jornalista pretende ter o compromisso é problemática. Quanto à liberdade,
existem duas vertentes: a liberdade que é suprimida por meio
dos atos de força (Estado Novo, AI-5 etc.) e a relativa liberdade que os jornalistas podem
obter nos chamados regimes
abertos.
No primeiro caso, a liberdade de imprensa é suprimida de
cambulhada com outras liberdades. O dilema é ir para a cadeia ou para a rua.
As empresas coexistem com a
censura, e a ordem é imposta
de cima para baixo. Nos regimes de força, o jornalista fará
necessariamente este roteiro:
reclamará, pedirá demissão ou
será demitido, mudará de ofício ou, na impossibilidade de
arranjar nova profissão, fará
outra coisa dentro do jornal.
A outra vertente é mais complexa. Nos regimes abertos
-como o atual- não existe a
repressão escancarada do governo, mas vigora a ordem interna dos grupos que sustentam os jornais. Em nível de
empresa, não se pode furar os
interesses que cada jornal defende, sejam eles econômicos,
morais, políticos, religiosos, esportivos, artísticos -no mais
das vezes são todos esses interesses juntos e ampliados pelas
circunstâncias do mercado.
Em nível de redação, cada
editoria se exprime por meio
de uma hierarquia que repete
a ordem da empresa. O profissional é obrigado a se submeter aos critérios dos editores
que entre si se organizam para
decupar e executar a ordem de
cima. A partir de cada feudo,
os editores impõem a própria
ordem para as bases. Espremido entre as pilastras de comando, o profissional sente na carne que a sua liberdade é uma
imagem poética. A única liberdade que se apresenta é a submissão ou a demissão.
O caso que conheço com
maiores detalhes é o meu próprio. Em 1964 trabalhava no
"Correio da Manhã", exercendo complicadas funções que
iam de editor às de editorialista numa sala esverdeada que
fora apelidada de Petit Trianon. Apesar da minha presença, era considerada o Santo
dos Santos da redação: ali se
demitiam ministros com um
simples tópico. A fama era
exagerada, mas de um de seus
telefones vi e ouvi o Jorge Serpa
Filho demitir um ministro da
Fazenda.
O jornal começara aquele
ano aumentando o grau de sua
campanha contra o governo
Goulart, campanha que culminaria com os editoriais "Basta!" e "Fora!". No dia 2 de abril
publiquei uma crônica que irritou leitores e assinantes habituados à linha até então
adotada pelo "Correio".
Havia um vazio no editorial,
a tradição de independência
do jornal não podia aceitar
placidamente a ditadura que
então se instaurava. A parte
noticiosa permanecia contra
Goulart, mas a linha a ser adotada esperava a poeira descer.
Foi isso exatamente o que não
fiz: joguei tudo no ventilador e,
por um momento, a direção do
jornal ficou indecisa, até que a
proprietária reconheceu nas
minhas crônicas aquilo que ela
chamava de a voz do velho
"Correio".
Outros jornalistas já estavam
na mesma trincheira: Otto
Maria Carpeaux, Edmundo
Moniz, Márcio Moreira Alves,
Hermano Alves e outros. O Antônio Callado, na ocasião, trabalhava no "Jornal do Brasil".
Não podendo escrever ali o que
desejava, largou o "JB" e voltou
para o "Correio". Estava formado o primeiro grupo de reação contra o movimento militar. Primeiro e, durante muito
tempo, único.
Até o AI-5 de 1968, a imprensa foi livre, cada jornal assumindo a responsabilidade de
ter a sua opinião ou não ter
opinião alguma. O "Correio da
Manhã" foi o púnico a comprar a briga contra o regime. O
resto da imprensa dividiu-se
entre o aplauso e a posição em
cima do muro.
Evidente que o governo militar tomou providências. Uma
delas, por meio do ministro da
Guerra (era "da Guerra" antigamente), foi a de me processar com base na Lei de Segurança Nacional, invocando o
artigo que pune os crimes de
traição à pátria. A pátria, no
caso, eram os militares. Por
meio do processo aberto contra
mim, o governo tentava intimidar a classe -mas só teve
medo quem quis ou já estava
adrede para o medo.
Alarmado com o boicote das
agências de publicidade, a proprietária solicitou os serviços
de uma espécie de playboy da
época, já desbotado pelo tempo, que nunca havia pisado
numa redação, mas alardeava
intimidade com agências e
anunciantes. Ele alegou a impossibilidade de obter recursos, enquanto o jornal mantivesse a linha de contestação
-e o meu nome, em sua opinião, era o de digestão mais difícil.
Sabendo disso, publiquei
uma crônica violentíssima e à
noite pedi demissão ao Callado -que estava reassumindo
o cargo de redator-chefe. Callado aceitou minha demissão,
mas também se demitiu, dando tempo para que fosse providenciado um substituto para
ele.
Depois foi a vez dos demais.
Um a um, caíram todos. A
mesma turma, já ampliada por
outros jornalistas, escritores,
artistas, gente do cinema e do
teatro, reagrupou-se em torno
da editora Civilização Brasileira e dali iniciou-se outra fase de resistência à quartelada.
Foram anos de cadeia e processos, de desemprego e desesperança.
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