São Paulo, sexta, 7 de agosto de 1998

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Mito e realidade da liberdade de imprensa

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial

Duas quimeras do ofício: a liberdade de imprensa e o compromisso com a verdade. Excetuando os detalhes miúdos do dia-a-dia ("o caixão baixou à sepultura às cinco horas da tarde" pode ser uma informação verdadeira), a verdade com a qual o jornalista pretende ter o compromisso é problemática. Quanto à liberdade, existem duas vertentes: a liberdade que é suprimida por meio dos atos de força (Estado Novo, AI-5 etc.) e a relativa liberdade que os jornalistas podem obter nos chamados regimes abertos.
No primeiro caso, a liberdade de imprensa é suprimida de cambulhada com outras liberdades. O dilema é ir para a cadeia ou para a rua.
As empresas coexistem com a censura, e a ordem é imposta de cima para baixo. Nos regimes de força, o jornalista fará necessariamente este roteiro: reclamará, pedirá demissão ou será demitido, mudará de ofício ou, na impossibilidade de arranjar nova profissão, fará outra coisa dentro do jornal.
A outra vertente é mais complexa. Nos regimes abertos -como o atual- não existe a repressão escancarada do governo, mas vigora a ordem interna dos grupos que sustentam os jornais. Em nível de empresa, não se pode furar os interesses que cada jornal defende, sejam eles econômicos, morais, políticos, religiosos, esportivos, artísticos -no mais das vezes são todos esses interesses juntos e ampliados pelas circunstâncias do mercado.
Em nível de redação, cada editoria se exprime por meio de uma hierarquia que repete a ordem da empresa. O profissional é obrigado a se submeter aos critérios dos editores que entre si se organizam para decupar e executar a ordem de cima. A partir de cada feudo, os editores impõem a própria ordem para as bases. Espremido entre as pilastras de comando, o profissional sente na carne que a sua liberdade é uma imagem poética. A única liberdade que se apresenta é a submissão ou a demissão.
O caso que conheço com maiores detalhes é o meu próprio. Em 1964 trabalhava no "Correio da Manhã", exercendo complicadas funções que iam de editor às de editorialista numa sala esverdeada que fora apelidada de Petit Trianon. Apesar da minha presença, era considerada o Santo dos Santos da redação: ali se demitiam ministros com um simples tópico. A fama era exagerada, mas de um de seus telefones vi e ouvi o Jorge Serpa Filho demitir um ministro da Fazenda.
O jornal começara aquele ano aumentando o grau de sua campanha contra o governo Goulart, campanha que culminaria com os editoriais "Basta!" e "Fora!". No dia 2 de abril publiquei uma crônica que irritou leitores e assinantes habituados à linha até então adotada pelo "Correio".
Havia um vazio no editorial, a tradição de independência do jornal não podia aceitar placidamente a ditadura que então se instaurava. A parte noticiosa permanecia contra Goulart, mas a linha a ser adotada esperava a poeira descer. Foi isso exatamente o que não fiz: joguei tudo no ventilador e, por um momento, a direção do jornal ficou indecisa, até que a proprietária reconheceu nas minhas crônicas aquilo que ela chamava de a voz do velho "Correio".
Outros jornalistas já estavam na mesma trincheira: Otto Maria Carpeaux, Edmundo Moniz, Márcio Moreira Alves, Hermano Alves e outros. O Antônio Callado, na ocasião, trabalhava no "Jornal do Brasil". Não podendo escrever ali o que desejava, largou o "JB" e voltou para o "Correio". Estava formado o primeiro grupo de reação contra o movimento militar. Primeiro e, durante muito tempo, único.
Até o AI-5 de 1968, a imprensa foi livre, cada jornal assumindo a responsabilidade de ter a sua opinião ou não ter opinião alguma. O "Correio da Manhã" foi o púnico a comprar a briga contra o regime. O resto da imprensa dividiu-se entre o aplauso e a posição em cima do muro.
Evidente que o governo militar tomou providências. Uma delas, por meio do ministro da Guerra (era "da Guerra" antigamente), foi a de me processar com base na Lei de Segurança Nacional, invocando o artigo que pune os crimes de traição à pátria. A pátria, no caso, eram os militares. Por meio do processo aberto contra mim, o governo tentava intimidar a classe -mas só teve medo quem quis ou já estava adrede para o medo.
Alarmado com o boicote das agências de publicidade, a proprietária solicitou os serviços de uma espécie de playboy da época, já desbotado pelo tempo, que nunca havia pisado numa redação, mas alardeava intimidade com agências e anunciantes. Ele alegou a impossibilidade de obter recursos, enquanto o jornal mantivesse a linha de contestação -e o meu nome, em sua opinião, era o de digestão mais difícil.
Sabendo disso, publiquei uma crônica violentíssima e à noite pedi demissão ao Callado -que estava reassumindo o cargo de redator-chefe. Callado aceitou minha demissão, mas também se demitiu, dando tempo para que fosse providenciado um substituto para ele.
Depois foi a vez dos demais. Um a um, caíram todos. A mesma turma, já ampliada por outros jornalistas, escritores, artistas, gente do cinema e do teatro, reagrupou-se em torno da editora Civilização Brasileira e dali iniciou-se outra fase de resistência à quartelada. Foram anos de cadeia e processos, de desemprego e desesperança.



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