São Paulo, sexta-feira, 07 de setembro de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

Como pagar uma dívida que precisa ser paga?

Palavras, palavras, palavras. A banalidade da citação será acrescida pela do velho ditado: ""Palavras, o vento as leva!". Dá no mesmo a sabedoria de Shakespeare e a do povo.
É nela que penso neste aniversário da nossa Independência, o centésimo não sei quantos. Mais um pouco e estaremos comemorando o segundo aniversário do brado retumbante: "Independência ou morte!".
Repetido em tom de farsa, como manda a tradição, o grito que tivemos dia desses foi ""exportar ou morrer". Palavras, palavras, palavras. Essas, o vento nem precisou levar.
Assim como o Sete de Setembro nos livrou apenas das cortes de Lisboa e deu-nos direito a uma bandeira e a um hino que prevaleceram até o advento da República, o "exportar ou morrer" não deixou de ser um lema que nem sequer colou como marketing.
Não ficamos independentes à força de um grito. Berro não resolve mesmo. Até hoje dependemos de cortes estrangeiras, estejam elas sediadas em Lisboa, Londres ou Washington. Chamar o FMI e o G-8 de ""cortes" talvez seja exagero. São instituições democráticas, liberais e até mesmo neoliberais, além de globalizadas pelo uso e pelo abuso.
Assim como o brado retumbante de 1822 não nos tornou realmente livres, a abolição da escravatura de 1888 não tornou os escravos livres: transformou-os em bóias-frias, em subcidadãos que, até hoje, sob diversas camadas trabalhistas, continuam na pior, sem a garantia do teto precário e da comida insuficiente fornecidas pela casa-grande, que, esta sim, continuou intata em seus privilégios e em sua força.
Libertados pela Lei Áurea, os escravos tiveram a liberdade de morrer ou de aceitar subempregos, que até hoje prevalecem para os afro-brasileiros. E este é o meu assunto de hoje.
No domingo, escrevi na pág. A2 uma crônica sobre dois assuntos paralelos, mas diferentes: a reunião anti-racista que se realizou na África do Sul e a reivindicação que, de tempos em tempos, é feita por lideranças negras, no sentido de serem indenizados todos os cidadãos da raça afro-brasileira, descendentes dos escravos que durante séculos sofreram nos campos, nas minas, nas cozinhas das casas urbanas.
Impossível quantificar essa dívida histórica. No pós-guerra de 1945, Alemanha e Áustria, para apagarem a mancha do anti-semitismo que criou o Holocausto, providenciaram um tipo de indenização em dinheiro aos sobreviventes e descendentes daqueles que tudo perderam durante o nazismo, até mesmo a vida.
Bem ou mal, uma ínfima parte de judeus, em diversas partes do mundo, continua recebendo essa indenização quase simbólica, pois, como disse acima, é impossível quantificar o preço de tão horrendo crime.
Algumas lideranças negras, aqui e nos Estados Unidos, invocam este precedente para se habilitarem a um tipo de indenização também simbólica, impossível de ser quantificada e impossível de ser paga operacionalmente. Como cadastrar os milhões de descendentes de escravos? Como estabelecer a quantia que deverá ser paga?
O fato é que devemos -o Brasil como um todo, bem como outros países que adotaram a escravidão- uma reparação moral e material aos netos, bisnetos e tataranetos dos africanos que aqui chegaram sequestrados e viajaram em navios negreiros acorrentados em lotes. Quando morria um negro, o lote inteiro era jogado ao mar, pois as correntes só podiam ser rompidas ao chegarem em terra firme.
Como disse Castro Alves, era horror e mais horror. Era infâmia demais. Horror e infâmia que, de certa forma, prevalecem em nossa sociedade. Temos leis anti-racistas, e agora mesmo se discute a criação de vagas em universidades para estudantes negros. Mas, até chegar à universidade, o negro já terá passado por discriminações que continuam e continuarão. O racismo explícito é condenado, mas o implícito continua em toda a parte -no mercado de trabalho, principalmente.
Levantei a hipótese de dar aos afro-brasileiros uma isenção de 10% nos preços dos aluguéis, da saúde, da educação, do transporte de massa e dos itens básicos da alimentação.
No curto prazo, haveria um aumento geral nos preços de todos os produtos -o que daria na mesma-, mas, a médio prazo, a situação se normalizaria. E haveria uma data para acabar essa discriminação às avessas, como 2088, por exemplo, segundo centenário da abolição.
Brancos e negros, maiores de 65 anos, ganham na carteira de identidade a indicação de um privilégio que lhes dá gratuidade nos ônibus, nos trens, no metrô e nas barcas, além de atendimento preferencial nas causas trabalhistas e nas filas dos bancos.
Não seria a volta daquela identificação que prevaleceu até há pouco, em que os indivíduos eram discriminados como brancos, negros ou pardos. Muitos brasileiros ainda têm na certidão de nascimento a identificação de cor, felizmente abolida.
Assim como há a indicação ""maior de 65 anos" na carteira de identidade dos idosos, poderia haver a indicação ""origem afro-brasileira", que me parece politicamente correta. E que daria aos descendentes dos escravos a indenização que todos lhes devemos.


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