São Paulo, sábado, 07 de setembro de 2002

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COMENTÁRIO

Uma forma de resistência que pode incomodar

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Nas encostas do Vesúvio, recobertas por cinzas e lava, medra uma planta teimosa chamada flor de giesta. O fato, exposto pelo poeta italiano Leopardi, é lembrado por Alfredo Bosi ao descrever o trabalho das comunidades de base paulistas em pleno regime militar. Está no ensaio "A Escrita e os Excluídos", e também serve de metáfora ao segundo termo do binômio "Literatura e Resistência". A flor resiste.
Resistência é um conceito complicado e a primeira -e não menos importante- pergunta que surge é: resistência a quem ou a quê?
Bosi reconhece a dificuldade, dedicando outro ensaio, "Narrativa e Resistência", a explicar a idéia. Em linhas muito gerais, podemos dizer que a resistência pode ser vista como tema de uma obra ficcional ou então funcionar como parte integrante do processo de escritura.
No primeiro caso, temos as obras de Sartre e de Camus, as "Memórias do Cárcere", de Graciliano Ramos, e "A Rosa do Povo", de Drummond, que surgiram como reação ao fascismo, à guerra e às injustiças ético-sociais. No segundo, encontramos a narrativa de um sujeito que "em vez de reproduzir mecanicamente o esquema das interações onde se insere, dá um salto para uma posição de distância e, deste ângulo, se vê a si mesmo e reconhece e põe em crise os laços apertados que o prendem à teia das instituições".
A literatura exibe resistência como parte inerente à escrita quando revela as imperfeições da vida, quando mostra o abismo que há entre o cotidiano alienante e o real "contexto existencial e histórico" onde se encaixa o sujeito.
Essa condição independe das opções ideológicas do autor, e mesmo de suas escolhas temáticas, como ocorre em Pirandello, Proust, Pound, Borges e Clarice Lispector.
Não é portanto aleatória a escolha dos artigos deste livro. De uma forma ou de outra, seus sujeitos "resistem". Resiste Cruz e Souza ("Poesia Versus Racismo"), que acusa a ditadura do cientificismo; resiste Euclydes da Cunha ao mostrar a oposição messiânica dos seguidores de Antônio Conselheiro ("Canudos Não se Rendeu"); resiste o padre Antônio Vieira ao se defender das acusações do Santo Ofício e propor "um sonho de justiça" terreno ("Vieira e o Reino deste Mundo"); resiste João Antônio ("Um Boêmio entre Duas Cidades"), ao dar combate "aos regimes e estilos dominantes"; resiste uma certa literatura, quando se firma contra "a máquina especular e espetacular" da indústria cultural hiper-realista, brutalista, conteudista e apelativa dos tempos atuais.
Mas o quadro pode não ser tão simples. Bosi tanto sabe disso que logo explica que resistência é um fenômeno em princípio ético, não estético, estando assim ligado à ordem da vontade e da ação.
Existe um perigo maior, porém, se o transformarmos em juízo normativo ou, na pior das hipóteses, num raciocínio tautológico: o que resiste é bom; o que não resiste é mau -e vice-versa. Correríamos o risco de, modificando à Gertrude Stein nossa metáfora inicial, ficar repetindo "uma flor é uma flor é uma flor é uma flor".
Num dos melhores ensaios do livro, o crítico examina "O Uraguai", de Basílio da Gama, tido como obra pusilânime, pois fundada num esquema que defende a política tirânica do marquês de Pombal e que justifica o massacre dos índios. Estudando documentos e obras do Iluminismo e analisando os motores internos do poema, Bosi mostra que o caso é outro: na retórica polifônica de "O Uraguai", há espaço para o discurso nativo contra o projeto autoritário do colonizador, o que cria um embate dramático e eleva o "páthos" da obra.
O que não podemos é dizer que "O Uraguai" merece crédito porque traz, imbuído em si, uma voz de oposição à tirania pombalina. O conceito de resistência tem uma indesejável facilidade para romper o molde estético e se impor novamente como valor ético ou ideológico (que justificaria o estético).
E, se a resistência é forma imanente de toda escrita (de toda boa escrita?), qual sua eficácia como parâmetro distintivo na análise das obras literárias, além de meramente separar o joio e o trigo?
Bosi não cai nessas armadilhas, alertando aliás sobre elas. Nos melhores ensaios, evita-as simplesmente dispensando o conceito. No primeiro ("Por um Historicismo Renovado"), em que expõe uma breve trajetória da crítica literária brasileira, nem chega a mencioná-lo. O autor procura aqui conjugar os pólos aparentemente díspares do formalismo e do historicismo.
Embora descarte com excessiva rapidez experiências às vezes malogradas no Brasil, mas longe de se mostrarem infrutíferas em geral, como o "new criticism", a estilística e o estruturalismo, ele tece uma análise bem ponderada sobre o lugar ocupado por Mário de Andrade, Otto Maria Carpeaux e Antonio Candido no nosso ensaísmo.
Ao lado deles, Bosi resiste (poderíamos dizer) como pensador original, humanista católico, eruditíssimo, e, se certo incômodo causa em alguns momentos, é em função de sua peculiar forma de resistência.



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