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COMENTÁRIO
Uma forma de resistência que pode incomodar
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Nas encostas do Vesúvio,
recobertas por cinzas e lava,
medra uma planta teimosa chamada flor de giesta. O fato, exposto pelo poeta italiano Leopardi, é
lembrado por Alfredo Bosi ao
descrever o trabalho das comunidades de base paulistas em pleno
regime militar. Está no ensaio "A
Escrita e os Excluídos", e também
serve de metáfora ao segundo termo do binômio "Literatura e Resistência". A flor resiste.
Resistência é um conceito complicado e a primeira -e não menos importante- pergunta que
surge é: resistência a quem ou a
quê?
Bosi reconhece a dificuldade,
dedicando outro ensaio, "Narrativa e Resistência", a explicar a
idéia. Em linhas muito gerais, podemos dizer que a resistência pode ser vista como tema de uma
obra ficcional ou então funcionar
como parte integrante do processo de escritura.
No primeiro caso, temos as
obras de Sartre e de Camus, as
"Memórias do Cárcere", de Graciliano Ramos, e "A Rosa do Povo", de Drummond, que surgiram como reação ao fascismo, à
guerra e às injustiças ético-sociais.
No segundo, encontramos a narrativa de um sujeito que "em vez
de reproduzir mecanicamente o
esquema das interações onde se
insere, dá um salto para uma posição de distância e, deste ângulo,
se vê a si mesmo e reconhece e põe
em crise os laços apertados que o
prendem à teia das instituições".
A literatura exibe resistência como parte inerente à escrita quando revela as imperfeições da vida,
quando mostra o abismo que há
entre o cotidiano alienante e o real
"contexto existencial e histórico"
onde se encaixa o sujeito.
Essa condição independe das
opções ideológicas do autor, e
mesmo de suas escolhas temáticas, como ocorre em Pirandello,
Proust, Pound, Borges e Clarice
Lispector.
Não é portanto aleatória a escolha dos artigos deste livro. De uma
forma ou de outra, seus sujeitos
"resistem". Resiste Cruz e Souza
("Poesia Versus Racismo"), que
acusa a ditadura do cientificismo;
resiste Euclydes da Cunha ao
mostrar a oposição messiânica
dos seguidores de Antônio Conselheiro ("Canudos Não se Rendeu"); resiste o padre Antônio
Vieira ao se defender das acusações do Santo Ofício e propor
"um sonho de justiça" terreno
("Vieira e o Reino deste Mundo");
resiste João Antônio ("Um Boêmio entre Duas Cidades"), ao dar
combate "aos regimes e estilos
dominantes"; resiste uma certa literatura, quando se firma contra
"a máquina especular e espetacular" da indústria cultural hiper-realista, brutalista, conteudista e
apelativa dos tempos atuais.
Mas o quadro pode não ser tão
simples. Bosi tanto sabe disso que
logo explica que resistência é um
fenômeno em princípio ético, não
estético, estando assim ligado à
ordem da vontade e da ação.
Existe um perigo maior, porém,
se o transformarmos em juízo
normativo ou, na pior das hipóteses, num raciocínio tautológico: o
que resiste é bom; o que não resiste é mau -e vice-versa. Correríamos o risco de, modificando à
Gertrude Stein nossa metáfora
inicial, ficar repetindo "uma flor é
uma flor é uma flor é uma flor".
Num dos melhores ensaios do
livro, o crítico examina "O Uraguai", de Basílio da Gama, tido
como obra pusilânime, pois fundada num esquema que defende a
política tirânica do marquês de
Pombal e que justifica o massacre
dos índios. Estudando documentos e obras do Iluminismo e analisando os motores internos do
poema, Bosi mostra que o caso é
outro: na retórica polifônica de
"O Uraguai", há espaço para o
discurso nativo contra o projeto
autoritário do colonizador, o que
cria um embate dramático e eleva
o "páthos" da obra.
O que não podemos é dizer que
"O Uraguai" merece crédito porque traz, imbuído em si, uma voz
de oposição à tirania pombalina.
O conceito de resistência tem
uma indesejável facilidade para
romper o molde estético e se impor novamente como valor ético
ou ideológico (que justificaria o
estético).
E, se a resistência é forma imanente de toda escrita (de toda boa
escrita?), qual sua eficácia como
parâmetro distintivo na análise
das obras literárias, além de meramente separar o joio e o trigo?
Bosi não cai nessas armadilhas,
alertando aliás sobre elas. Nos
melhores ensaios, evita-as simplesmente dispensando o conceito. No primeiro ("Por um Historicismo Renovado"), em que expõe
uma breve trajetória da crítica literária brasileira, nem chega a
mencioná-lo. O autor procura
aqui conjugar os pólos aparentemente díspares do formalismo e
do historicismo.
Embora descarte com excessiva
rapidez experiências às vezes malogradas no Brasil, mas longe de
se mostrarem infrutíferas em geral, como o "new criticism", a estilística e o estruturalismo, ele tece
uma análise bem ponderada sobre o lugar ocupado por Mário de
Andrade, Otto Maria Carpeaux e
Antonio Candido no nosso ensaísmo.
Ao lado deles, Bosi resiste (poderíamos dizer) como pensador
original, humanista católico, eruditíssimo, e, se certo incômodo
causa em alguns momentos, é em
função de sua peculiar forma de
resistência.
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