São Paulo, sexta-feira, 07 de setembro de 2007

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Memória/análise

Fase pop quase ofuscou voz privilegiada

Discografia caudalosa de Pavarotti permite esquecer o declínio vocal de um dos maiores fenômenos da ópera do século 20

IRINEU FRANCO PERPETUO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Nos últimos anos de sua carreira, os problemas vocais e pessoais de Luciano Pavarotti ocuparam tanto a mídia que quase chegaram a jogar no esquecimento as inegáveis qualidades que fizeram do tenor um dos maiores fenômenos da ópera no século 20, ao lado do também tenor Enrico Caruso e da soprano Maria Callas.
Pavarotti pegou uma ária de Puccini ("Nessun Dorma", da ópera "Turandot") e deu a ela popularidade e difusão equivalentes às de uma canção pop. Isso aconteceu na abertura da Copa do Mundo de 1990, na Itália, no célebre concerto dos Três Tenores. Sim, Plácido Domingo e José Carreras também estavam lá, mas foi a ária de Pavarotti, inegavelmente, o item de maior sucesso da noite.
Com o talento moldado por Ettore Campogalliani (mesmo professor de canto de outro prodígio de Modena, a soprano Mirella Freni), Pavarotti estreou em 1961, em "La Bohème". A gravação da récita é reveladora: o público solta um "oh" de espanto ao ouvir o jovem e desconhecido tenor atingir e sustentar, sem esforço, o dó agudo da ária "Che Gelida Manina".
Dós de peito seriam a especialidade e a glória do jovem Pavarotti. Nova York se prostrou ao ouvi-lo emitir, no palco do Metropolitan, como se dificuldade não houvesse, os nove dós da ária de tenor da ópera "A Filha do Regimento", de Donizetti; e os fanáticos gostam de cronometrar o mais longo dó sustentado pelo tenor (aparentemente, foram 13 segundos, em "Il Trovatore", de Verdi).
Inicialmente um tenor ligeiro, centrado nos papéis do "bel canto" (como Nemorino, no "Elixir do Amor", de Donizetti -talvez, sua criação mais emblemática dessa época), Pavarotti rapidamente evoluiu para o registro de tenor lírico -Riccardo, em "Un Ballo in Maschera", de Verdi, foi possivelmente o melhor veículo para seu timbre inconfundível, dourado e cheio de harmônicos, dotado, no registro agudo, daquele brilho especial que os italianos chamam de "squillo".

Parceiro do pop
Mas os triunfos e o brilho, infelizmente, não contam a história toda. A partir dos Três Tenores, e com o subseqüente e inevitável declínio vocal, Pavarotti (que nunca foi fã de ensaios, nem parecia ter conhecimentos sólidos em leitura de partituras) privilegiou cada vez mais as facilidades de cantar um repertório batido em apresentações ao ar livre, com o auxílio amigo do microfone, relegando a segundo plano o estresse das récitas de ópera (em 1992, o implacável público do Scala de Milão vaiou sua atuação em "Don Carlo", de Verdi).
E seus parceiros primordiais de duetos, que um dia haviam sido lendas da ópera, como a soprano Joan Sutherland, passaram a ser astros pop, como Michael Bolton, Enrique Iglesias e as Spice Girls. Sua fama e fortuna cresciam na proporção direta da queda de sua reputação entre os especialistas da ópera, que quase unanimemente passaram a reconhecer em Plácido Domingo o maior tenor de sua geração.
Pertencem a esta fase as aparições mais célebres de Pavarotti no Brasil. Em 1991, debaixo de chuva, no estádio do Pacaembu, em SP, ainda com a voz em forma, ele se defrontou com um público menos interessado em aplaudir seus agudos que por choramingar pela falta, no repertório do espetáculo, de "Caruso", melosa canção de Lucio Dalla.
Em 1995, reverenciou Romário e atraiu celebridades ao Metropolitan, no Rio de Janeiro, enquanto em 1998, em outro estádio -desta vez, no Beira-Rio, em Porto Alegre-, dividiu o palco com Roberto Carlos, em embaraçosa interpretação da "Ave Maria", de Schubert, e da napolitana "O Sole Mio".
A mais constrangedora aconteceu em Salvador, em 2000, novamente debaixo de chuva, quando, ao lado de Maria Bethânia e Gal Costa, Pavarotti apresentou o triste espetáculo de uma vocalidade decrépita. No mesmo ano, esteve em São Paulo em apresentação dos Três Tenores.
Felizmente, como seu legado, resta uma discografia caudalosa, na qual é possível esquecer esses momentos desabonadores e matar a saudade de uma das mais privilegiadas vozes de tenor do século 20.


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