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Memória/análise
Fase pop quase ofuscou voz privilegiada
Discografia caudalosa de Pavarotti permite esquecer o declínio vocal de um dos maiores fenômenos da ópera do século 20
IRINEU FRANCO PERPETUO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Nos últimos anos de sua
carreira, os problemas
vocais e pessoais de
Luciano Pavarotti ocuparam
tanto a mídia que quase chegaram a jogar no esquecimento as
inegáveis qualidades que fizeram do tenor um dos maiores
fenômenos da ópera no século
20, ao lado do também tenor
Enrico Caruso e da soprano
Maria Callas.
Pavarotti pegou uma ária de
Puccini ("Nessun Dorma", da
ópera "Turandot") e deu a ela
popularidade e difusão equivalentes às de uma canção pop.
Isso aconteceu na abertura da
Copa do Mundo de 1990, na
Itália, no célebre concerto dos
Três Tenores. Sim, Plácido Domingo e José Carreras também
estavam lá, mas foi a ária de Pavarotti, inegavelmente, o item
de maior sucesso da noite.
Com o talento moldado por
Ettore Campogalliani (mesmo
professor de canto de outro
prodígio de Modena, a soprano
Mirella Freni), Pavarotti estreou em 1961, em "La
Bohème". A gravação da récita
é reveladora: o público solta um
"oh" de espanto ao ouvir o jovem e desconhecido tenor atingir e sustentar, sem esforço, o
dó agudo da ária "Che Gelida
Manina".
Dós de peito seriam a especialidade e a glória do jovem
Pavarotti. Nova York se prostrou ao ouvi-lo emitir, no palco
do Metropolitan, como se dificuldade não houvesse, os nove
dós da ária de tenor da ópera "A
Filha do Regimento", de Donizetti; e os fanáticos gostam de
cronometrar o mais longo dó
sustentado pelo tenor (aparentemente, foram 13 segundos,
em "Il Trovatore", de Verdi).
Inicialmente um tenor ligeiro, centrado nos papéis do "bel
canto" (como Nemorino, no
"Elixir do Amor", de Donizetti
-talvez, sua criação mais emblemática dessa época), Pavarotti rapidamente evoluiu para
o registro de tenor lírico -Riccardo, em "Un Ballo in Maschera", de Verdi, foi possivelmente
o melhor veículo para seu timbre inconfundível, dourado e
cheio de harmônicos, dotado,
no registro agudo, daquele brilho especial que os italianos
chamam de "squillo".
Parceiro do pop
Mas os triunfos e o brilho, infelizmente, não contam a história toda. A partir dos Três Tenores, e com o subseqüente e
inevitável declínio vocal, Pavarotti (que nunca foi fã de ensaios, nem parecia ter conhecimentos sólidos em leitura de
partituras) privilegiou cada vez
mais as facilidades de cantar
um repertório batido em apresentações ao ar livre, com o auxílio amigo do microfone, relegando a segundo plano o estresse das récitas de ópera (em
1992, o implacável público do
Scala de Milão vaiou sua atuação em "Don Carlo", de Verdi).
E seus parceiros primordiais
de duetos, que um dia haviam
sido lendas da ópera, como a
soprano Joan Sutherland, passaram a ser astros pop, como
Michael Bolton, Enrique Iglesias e as Spice Girls. Sua fama e
fortuna cresciam na proporção
direta da queda de sua reputação entre os especialistas da
ópera, que quase unanimemente passaram a reconhecer
em Plácido Domingo o maior
tenor de sua geração.
Pertencem a esta fase as aparições mais célebres de Pavarotti no Brasil. Em 1991, debaixo de chuva, no estádio do Pacaembu, em SP, ainda com a
voz em forma, ele se defrontou
com um público menos interessado em aplaudir seus agudos que por choramingar pela
falta, no repertório do espetáculo, de "Caruso", melosa canção de Lucio Dalla.
Em 1995, reverenciou Romário e atraiu celebridades ao Metropolitan, no Rio de Janeiro,
enquanto em 1998, em outro
estádio -desta vez, no Beira-Rio, em Porto Alegre-, dividiu
o palco com Roberto Carlos, em
embaraçosa interpretação da
"Ave Maria", de Schubert, e da
napolitana "O Sole Mio".
A mais constrangedora aconteceu em Salvador, em 2000,
novamente debaixo de chuva,
quando, ao lado de Maria Bethânia e Gal Costa, Pavarotti
apresentou o triste espetáculo
de uma vocalidade decrépita.
No mesmo ano, esteve em São
Paulo em apresentação dos
Três Tenores.
Felizmente, como seu legado, resta uma discografia caudalosa, na qual é possível esquecer esses momentos desabonadores e matar a saudade
de uma das mais privilegiadas
vozes de tenor do século 20.
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