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RESENHA DA SEMANA
As "expressões felizes"
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Não é de espantar que um
homem que fez história ao
criar novos parâmetros para a
sua época, renovando a literatura, o teatro, a crítica de arte, além
da filosofia, da ciência e da política, tenha passado a vida quebrando a cabeça para imaginar o
inimaginável.
Denis Diderot (1713-84) foi
imortalizado como um dos
maiores expoentes do Iluminismo francês, editor da "Enciclopédia" ao lado de d'Alembert,
mas também como autor dos
clássicos "A Religiosa", "Jacques, o Fatalista" e "O Sobrinho
de Rameau".
O primeiro volume das obras
de Diderot organizadas e traduzidas por J. Guinsburg para a
editora Perspectiva reúne uma
seleção dos textos filosóficos e
políticos do autor da célebre
máxima: "Nenhum homem recebeu da natureza o direito de
comandar os outros".
Mas não é a política -ou pelo
menos não de uma maneira direta ou exclusiva- que mais
surpreende nesses textos. Diderot está preocupado em conceber o inconcebível: como é que
um sistema ou uma forma ultrapassa os seus próprios limites
para alcançar o que dentro desse
mesmo sistema ou forma era
antes inconcebível? Em outras
palavras: como se articulam memória e imaginação?
A pergunta domina a "Carta
sobre os Cegos para Uso dos
Que Vêem", um texto de juventude que inaugura o pensamento materialista do autor, num estilo provocador e por vezes sarcástico que o levou a ser preso
em 1749 pelo regime repressivo
de Luís 15, mas também está
presente no "Diálogo entre d'Alembert e Diderot" e em "O Sonho de d'Alembert".
O pretexto da "Carta", ao comentar uma experiência de remoção de cataratas realizada na
época, é indagar até que ponto o
cego de nascença pode ver se lhe
for restituída a visão. Diderot
conclui pelo bom senso: para
ver, não bastam olhos, é preciso
que os olhos aprendam a experiência da visão. Antes de chegar
a essa conclusão, porém, o autor
faz umas tantas digressões, e é
nelas que se revela a questão que
ele tanto persegue.
Diderot usa o cego como metáfora dos que enxergam. É a
imagem possível para nos fazer
entender os limites que nossa visão não nos permite ver. O
exemplo dos cegos relativiza a
onipotência da metafísica e da
razão e mostra o quanto elas estão ligadas aos nossos sentidos,
o quanto são dependentes dos
corpos que as produzem: "Se alguma vez um filósofo cego e surdo de nascença fizer um homem
à imitação do de Descartes, ouso
assegurar-vos (...) que colocará
a alma na ponta dos dedos; pois
é dali que lhe vêm as principais
sensações e todos os conhecimentos".
Diderot não está apenas atrás
da consciência da dúvida. Quer
compreender o que permite ao
homem escapar aos seus limites
para ver o que não pode enxergar, imaginar o inimaginável.
Procura a gênese do que o leva a
inventar e descobrir, à grande
arte e à grande ciência.
Tomando o caso de Nicholas
Saunderson (1682-1739), um cego de nascença que foi professor
de matemática em Cambridge,
onde deu lições de óptica, de
teoria da visão e sobre a natureza da luz e das cores com "êxito
espantoso", Diderot cria um
conceito para explicar tal prodígio, a que dá o belo nome de "expressões felizes".
Assim como a fala do estrangeiro que desconhece a língua
em que tenta se expressar e termina por inová-la a despeito de
si, pela escassez de vocabulário,
dizendo coisas que antes nela
não podiam ser ditas, as "expressões felizes" a que alude Diderot "são próprias a um sentido, ao tato, por exemplo, e (...)
metafóricas ao mesmo tempo a
outro sentido, como aos olhos;
daí resulta dupla luz para aquele
a quem se fala (...). É evidente
que, nessas ocasiões, Saunderson, com todo o espírito de que
dispunha, não entendia a si
mesmo senão pela metade, pois
percebia apenas a metade das
idéias ligadas aos termos que
empregava".
É graças a tais "expressões felizes" que o homem consegue sair
da mera repetição em que vive
para conceber, num processo
imaginativo e especulativo, de
dentro dos seus próprios limites, o que está para além deles, o
que lhe é inconcebível. É o que
permite a inovação na arte e na
ciência, e ao homem avançar
apesar de si mesmo.
Obras 1 - Filosofia e Política
Autor: Denis Diderot
Tradução: J. Guinsburg
Editora: Perspectiva
Quanto: R$ 35 (400 págs.)
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