São Paulo, sábado, 07 de outubro de 2000

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RESENHA DA SEMANA
As "expressões felizes"

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Não é de espantar que um homem que fez história ao criar novos parâmetros para a sua época, renovando a literatura, o teatro, a crítica de arte, além da filosofia, da ciência e da política, tenha passado a vida quebrando a cabeça para imaginar o inimaginável.
Denis Diderot (1713-84) foi imortalizado como um dos maiores expoentes do Iluminismo francês, editor da "Enciclopédia" ao lado de d'Alembert, mas também como autor dos clássicos "A Religiosa", "Jacques, o Fatalista" e "O Sobrinho de Rameau".
O primeiro volume das obras de Diderot organizadas e traduzidas por J. Guinsburg para a editora Perspectiva reúne uma seleção dos textos filosóficos e políticos do autor da célebre máxima: "Nenhum homem recebeu da natureza o direito de comandar os outros".
Mas não é a política -ou pelo menos não de uma maneira direta ou exclusiva- que mais surpreende nesses textos. Diderot está preocupado em conceber o inconcebível: como é que um sistema ou uma forma ultrapassa os seus próprios limites para alcançar o que dentro desse mesmo sistema ou forma era antes inconcebível? Em outras palavras: como se articulam memória e imaginação?
A pergunta domina a "Carta sobre os Cegos para Uso dos Que Vêem", um texto de juventude que inaugura o pensamento materialista do autor, num estilo provocador e por vezes sarcástico que o levou a ser preso em 1749 pelo regime repressivo de Luís 15, mas também está presente no "Diálogo entre d'Alembert e Diderot" e em "O Sonho de d'Alembert".
O pretexto da "Carta", ao comentar uma experiência de remoção de cataratas realizada na época, é indagar até que ponto o cego de nascença pode ver se lhe for restituída a visão. Diderot conclui pelo bom senso: para ver, não bastam olhos, é preciso que os olhos aprendam a experiência da visão. Antes de chegar a essa conclusão, porém, o autor faz umas tantas digressões, e é nelas que se revela a questão que ele tanto persegue.
Diderot usa o cego como metáfora dos que enxergam. É a imagem possível para nos fazer entender os limites que nossa visão não nos permite ver. O exemplo dos cegos relativiza a onipotência da metafísica e da razão e mostra o quanto elas estão ligadas aos nossos sentidos, o quanto são dependentes dos corpos que as produzem: "Se alguma vez um filósofo cego e surdo de nascença fizer um homem à imitação do de Descartes, ouso assegurar-vos (...) que colocará a alma na ponta dos dedos; pois é dali que lhe vêm as principais sensações e todos os conhecimentos".
Diderot não está apenas atrás da consciência da dúvida. Quer compreender o que permite ao homem escapar aos seus limites para ver o que não pode enxergar, imaginar o inimaginável. Procura a gênese do que o leva a inventar e descobrir, à grande arte e à grande ciência.
Tomando o caso de Nicholas Saunderson (1682-1739), um cego de nascença que foi professor de matemática em Cambridge, onde deu lições de óptica, de teoria da visão e sobre a natureza da luz e das cores com "êxito espantoso", Diderot cria um conceito para explicar tal prodígio, a que dá o belo nome de "expressões felizes".
Assim como a fala do estrangeiro que desconhece a língua em que tenta se expressar e termina por inová-la a despeito de si, pela escassez de vocabulário, dizendo coisas que antes nela não podiam ser ditas, as "expressões felizes" a que alude Diderot "são próprias a um sentido, ao tato, por exemplo, e (...) metafóricas ao mesmo tempo a outro sentido, como aos olhos; daí resulta dupla luz para aquele a quem se fala (...). É evidente que, nessas ocasiões, Saunderson, com todo o espírito de que dispunha, não entendia a si mesmo senão pela metade, pois percebia apenas a metade das idéias ligadas aos termos que empregava".
É graças a tais "expressões felizes" que o homem consegue sair da mera repetição em que vive para conceber, num processo imaginativo e especulativo, de dentro dos seus próprios limites, o que está para além deles, o que lhe é inconcebível. É o que permite a inovação na arte e na ciência, e ao homem avançar apesar de si mesmo.

Obras 1 - Filosofia e Política
    
Autor: Denis Diderot
Tradução: J. Guinsburg
Editora: Perspectiva
Quanto: R$ 35 (400 págs.)



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