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FERNANDO BONASSI
Os pandas não têm vergonha
Na Castelo Branco o sol espeta os vidros dos carros. O reflexo ardido vem bater nos olhos
da gente aqui em cima, no escadão. De qualquer maneira a rua é
mais alta, como se as casas tivessem derretido das calçadas. Um
PM na esquina abana os braços
quando a viatura da polícia técnica aparece. A ocorrência é num
quarto-e-cozinha de bloco, aonde
se chega escorregando por lombadas cobertas de lixo. Os dois peritos deslizam lá pra baixo. Sujam
as barras das calças. Ganham
uma sola de barro em cada pé de
sapato.
-Bosta!
-É lama.
-Como é que você sabe?
Nos cômodos, caixote é mesa.
Banco de kombi é sofá. Papelão é
cama. Duas malas reviradas: roupa de grife, tênis, CD pirata, resto
de pizza e refrigerante. Tem também cinco corpos emborcados.
Dois na cozinha, três na sala.
Duas mulheres, três homens. Na
verdade, duas meninas e três moleques. Os peritos ficam olhando
praquilo. Não por nada. Já viram
de tudo que pode estragar um almoço. Um deles faz o sinal da
cruz e vai contando as perfurações na parede. O outro fica
olhando. Não é pra conferir. Fala:
-Você sabe que eu me ligo em
filme de bicho...
-Se você for repetir aquela história das lagartas, eu...
-Esquece as lagartas. Me enchi o saco de borboleta. Já os pandas...
O que conta as perfurações olha
feio pro que gosta de filme de bicho; este último começa a catar
cápsulas do chão.
-Quando uma fêmea de panda quer se reproduzir, ela se esfrega nas árvores em torno do lugar
onde mora e depois fica esperando os machos...
-E daí?
-Pensa na simplicidade! Você
é um panda passeando pela floresta... de repente sente o cheiro...
vai até lá e pronto. Tudo certo.
Sem culpa, sem ressentimento.
-É simples assim?
-Tô te falando, os pandas não
têm a menor vergonha!
Aquele que contava as perfurações agora procura algo em torno.
Acha. É um saquinho de supermercado que ele vira do avesso,
pra usar como luva. Mexe nos cadáveres: nos bolsos e nas intimidades. Recolhe batom, duas carteiras vazias, 80 reais e um boné
de vereador. O outro, ainda varejando pelas cápsulas, não pára de
falar:
-Te digo mais: são os elefantes, meu caro, que vão de mal a
pior.
O que recolhia os objetos agora
escreve numa folha de papel:
"Duas mulheres, três homens; todos entre 15 e 20 anos; sem identificação". Aquele dos filmes de bicho encontra uma pedra de crack
(pequena, de cinco reais); mostra
pro primeiro, que pega e dá de
ombros.
-Que é que têm os elefantes?
-Os pobres coitados precisam
de centenas de quilos de mato todo dia pra encher o estômago. As
florestas acabando e eles morrendo de fome. Como morrem cada
vez mais cedo, as manadas passaram então a ser chefiadas pelos
elefantes jovens...
-Melhor pra eles.
Embaixo das anotações, o perito desenha um croqui do lugar,
põe os cadáveres, rabisca "X" nos
orifícios de entrada e "Y" nos de
saída das balas.
-Vinte e sete.
O outro conta as cápsulas:
-Treze.
Um anota a quantidade enquanto o outro põe as cápsulas no
bolso do paletó. Pega uma máquina fotográfica, põe filme.
-Você não entendeu: os elefantes jovens são inexperientes e
assustados. As manadas estão se
tornando cada vez mais violentas... invadem cidades, destroem
plantações... uma bagunça.
-Sei...
O fotógrafo bate quatro chapas.
Uma de cada canto da sala, depois o mesmo na cozinha, terminando de explicar o possível.
-Com essa mortandade toda,
quem se dá bem mesmo são os
carniceiros.
O outro vai embrulhando o que
encontrou num envelope pardo.
Do lado de fora anota o número
de chamada da ocorrência, o dia
e o endereço.
-Por quê?
-Muito cadáver espalhado...
Comida pra hiena, coiotes, abutres...
-Entendi.
Os dois param. Um bufa:
-Algo mais?
O outro faz que não com a cabeça.
-Ligar pro IML...
Vão saindo. Na porta, o sol de
novo, em cheio na cara deles. O
da máquina fotográfica faz uma
imagem da fachada da casa. Por
via das dúvidas. E arremata:
-Escuta o que eu te digo: o futuro é dos carniceiros, meu amigo.
Ao que o outro responde, enquanto senta e apanha o rádio da
viatura:
-Que novidade...
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