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São Paulo, terça-feira, 07 de outubro de 2003

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FERNANDO BONASSI

Os pandas não têm vergonha

Na Castelo Branco o sol espeta os vidros dos carros. O reflexo ardido vem bater nos olhos da gente aqui em cima, no escadão. De qualquer maneira a rua é mais alta, como se as casas tivessem derretido das calçadas. Um PM na esquina abana os braços quando a viatura da polícia técnica aparece. A ocorrência é num quarto-e-cozinha de bloco, aonde se chega escorregando por lombadas cobertas de lixo. Os dois peritos deslizam lá pra baixo. Sujam as barras das calças. Ganham uma sola de barro em cada pé de sapato.
-Bosta!
-É lama.
-Como é que você sabe?
Nos cômodos, caixote é mesa. Banco de kombi é sofá. Papelão é cama. Duas malas reviradas: roupa de grife, tênis, CD pirata, resto de pizza e refrigerante. Tem também cinco corpos emborcados. Dois na cozinha, três na sala. Duas mulheres, três homens. Na verdade, duas meninas e três moleques. Os peritos ficam olhando praquilo. Não por nada. Já viram de tudo que pode estragar um almoço. Um deles faz o sinal da cruz e vai contando as perfurações na parede. O outro fica olhando. Não é pra conferir. Fala:
-Você sabe que eu me ligo em filme de bicho...
-Se você for repetir aquela história das lagartas, eu...
-Esquece as lagartas. Me enchi o saco de borboleta. Já os pandas...
O que conta as perfurações olha feio pro que gosta de filme de bicho; este último começa a catar cápsulas do chão.
-Quando uma fêmea de panda quer se reproduzir, ela se esfrega nas árvores em torno do lugar onde mora e depois fica esperando os machos...
-E daí?
-Pensa na simplicidade! Você é um panda passeando pela floresta... de repente sente o cheiro... vai até lá e pronto. Tudo certo. Sem culpa, sem ressentimento.
-É simples assim?
-Tô te falando, os pandas não têm a menor vergonha!
Aquele que contava as perfurações agora procura algo em torno. Acha. É um saquinho de supermercado que ele vira do avesso, pra usar como luva. Mexe nos cadáveres: nos bolsos e nas intimidades. Recolhe batom, duas carteiras vazias, 80 reais e um boné de vereador. O outro, ainda varejando pelas cápsulas, não pára de falar:
-Te digo mais: são os elefantes, meu caro, que vão de mal a pior.
O que recolhia os objetos agora escreve numa folha de papel: "Duas mulheres, três homens; todos entre 15 e 20 anos; sem identificação". Aquele dos filmes de bicho encontra uma pedra de crack (pequena, de cinco reais); mostra pro primeiro, que pega e dá de ombros.
-Que é que têm os elefantes?
-Os pobres coitados precisam de centenas de quilos de mato todo dia pra encher o estômago. As florestas acabando e eles morrendo de fome. Como morrem cada vez mais cedo, as manadas passaram então a ser chefiadas pelos elefantes jovens...
-Melhor pra eles.
Embaixo das anotações, o perito desenha um croqui do lugar, põe os cadáveres, rabisca "X" nos orifícios de entrada e "Y" nos de saída das balas.
-Vinte e sete.
O outro conta as cápsulas:
-Treze.
Um anota a quantidade enquanto o outro põe as cápsulas no bolso do paletó. Pega uma máquina fotográfica, põe filme.
-Você não entendeu: os elefantes jovens são inexperientes e assustados. As manadas estão se tornando cada vez mais violentas... invadem cidades, destroem plantações... uma bagunça.
-Sei...
O fotógrafo bate quatro chapas. Uma de cada canto da sala, depois o mesmo na cozinha, terminando de explicar o possível.
-Com essa mortandade toda, quem se dá bem mesmo são os carniceiros.
O outro vai embrulhando o que encontrou num envelope pardo. Do lado de fora anota o número de chamada da ocorrência, o dia e o endereço.
-Por quê?
-Muito cadáver espalhado... Comida pra hiena, coiotes, abutres...
-Entendi.
Os dois param. Um bufa:
-Algo mais?
O outro faz que não com a cabeça.
-Ligar pro IML...
Vão saindo. Na porta, o sol de novo, em cheio na cara deles. O da máquina fotográfica faz uma imagem da fachada da casa. Por via das dúvidas. E arremata:
-Escuta o que eu te digo: o futuro é dos carniceiros, meu amigo.
Ao que o outro responde, enquanto senta e apanha o rádio da viatura:
-Que novidade...


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