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Livros - Crítica/biografia
Influenciado por Franz Kafka, Márai vê o mundo em ruínas
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Desconhecido por décadas, o húngaro Sándor
Márai vem sendo publicado em português há alguns
anos e, a cada lançamento, conquista mais leitores fiéis, impressionados com a produção
sóbria, sombria e oblíqua desse
escritor e jornalista que atravessou o século 20 (nasceu em
1900, em uma cidade que fazia
parte do Império Austro-Húngaro, e se suicidou em 1989, nos
Estados Unidos, pouco depois
da morte de sua mulher) e deixou mais de 50 livros de prosa,
poesia e teatro.
Em nova tradução admirável
de Paulo Schiller, chega agora
às livrarias uma de suas obras-primas, a narrativa biográfica
"Confissões de um Burguês",
feita pelo autor quando ele tinha pouco mais de 30 anos e na
qual se acompanha, acima de
tudo, o romance de formação
de um escritor em meio a um
mundo que desmoronava, de
um ser que muito cedo percebe,
paradoxalmente, que a "vida
passa nas trevas, palavras não
pronunciadas, gestos que em
seu tempo desprezamos, silêncios e medos".
Adolescência e guerra
Como se empunhasse uma
câmera fazendo aproximações
e tomadas à distância, Márai
retrata sua casa, sua vizinhança, sua cidade, cada ramo de sua
família, compondo a genealogia
de homens "feitos de uma matéria sem dúvida diferente,
mais sólida e dura que a da
maioria".
Vem em seguida a descoberta
nada exuberante do sexo, a
adolescência, em uma escola
que o afasta de todos, e, finalmente, o início da Primeira
Guerra Mundial, que simplesmente faz com que sua cidade
"mude" de país, passando a ser
parte da uma então nova nação,
a Tchecoslováquia.
Isso, contudo, não é narrado,
como se os acontecimentos que
de fato alteraram tudo fossem
demasiado excessivos para serem retraçados e só a partir das
pequenas coisas a vida pudesse
ser minimamente reelaborada
pela literatura (note-se que, na
época em que isso foi escrito,
Sándor Márai ainda não "sabia"
que aconteceria uma nova e
trágica guerra mundial e que,
posteriormente, sua obra seria
proibida pelo regime comunista no país que falava a língua em
que ele escrevia, o húngaro).
Influência de Kafka
Acompanhamos aí a perambulação do autor por diferentes
cidades da Europa e sua afirmação na profissão que escolhera desde cedo: "Preparo-me
para escrever desde a primeira
tomada de consciência, e hoje
sinto que trabalho desde a infância, não numa tarefa específica, mas numa "obra" única, imperfeita, atrapalhada, cheia de
ervas daninhas e coisas supérfluas...".
Para tanto, Márai reconhece
precocemente a importância
daquele que seria talvez o escritor mais decisivo do século 20,
Franz Kafka -"foi como o encontro do sonâmbulo com o caminho reto"-, a quem ele dedica pelo menos uma página memorável nessas suas "confissões": "Nunca "imitei" Kafka,
mas hoje sei que alguns de seus
escritos, pontos de vista, concepções iluminaram em mim
territórios escuros".
Os outros livros do autor já
disponíveis em português são
"As Brasas", "O Legado de Eszter", "Divórcio em Buda", "Rebeldes" e "Veredicto em Canudos", escrito por ele no final dos
anos 60 sob o impacto da leitura de "Os Sertões", de Euclides
da Cunha.
ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura
da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da
USP e autor de "O Abismo Invertido - Pessoa,
Borges e A Inquietude do Romance em "O Ano
da Morte de Ricardo Reis'" (editora Globo).
CONFISSÕES DE UM BURGUÊS
Autor: Sándor Márai
Tradução: Paulo Schiller
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 54 (456 págs.)
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