São Paulo, terça-feira, 07 de novembro de 2000

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ARNALDO JABOR
O PT-mulher é bem melhor que o PT-macho

A vitória de Marta Suplicy, uma mulher da burguesia, em São Paulo, foi um bom avanço para o amadurecimento político do PT. Simboliza uma aceitação de "nuances" ideológicas muito novas e profundas. Terá sido a gafe de Lula com os "veados" um ato falho compensatório pela angústia da perda do velho falocentrismo machista? "Só Freud sabe...", dirão os psicanalistas de galinheiro.
Mas é certo que o PT vai deixar de ser pedra para ser vidraça, tendo de se defrontar com as duras limitações da vida real. A oposição no poder ficará muito mais lúcida, perdendo o vício da aura utópica e irresponsável que teve com o delírio de seus "militantes imaginários". A pior doença infantil das esquerdas brasileiras é a idéia de estarem "fora" do país, "fora" do crime, fora do erro, fora das doenças tropicais e ibéricas, a idéia de que seriam mais "puros" por não meterem a mão na digamos... bosta. Como dizem as bichas de Pelotas, o PT vai ter de "sair do armário" e assumir uma sexualidade política mais radical por ser mais cor-de-rosa.
Essa atitude olímpica e machista enobrecia o PT e mantinha viva a cegueira teórica para o mundo real. Consideravam-se "fora" do processo e viam o Brasil como "uma outra terra" a ser construída; o Brasil real era visto com desinteresse, lugar de "burgueses e alienados". Os velhos comunas dos anos 60, como os "veados", queriam um "novo homem", queriam um outro país para além do arco-íris, começando "do zero", da raiz. Eu me lembro de quantos erros cometi na vida me considerando o "sal da terra", como em 64, quando lutávamos por um socialismo dançante, sem armas, sem logística, sem apoio da classe média, sem Exército, sem dinheiro e com ajuda do presidente da República, o Jango (até para tomar o poder precisávamos da ajuda do governo...).
Era patético ver o doce Darcy Ribeiro gritando que éramos a "Roma tropical", ou ouvir a mim mesmo, discursando na UNE no tempo em que seu presidente Zé Serra tinha um belo topete: "Companheiros, já liquidamos o imperialismo; só falta agora destruir a burguesia nacional! E nosso Exército estará ao lado do povo, porque os militares são oriundos da classe média progressista!". Deu no que deu.

O fim da virgem
Essa vitória do PT "desalienará" muitos "sonhadores do absoluto", que vão descobrir, na prática, que o "quente", hoje em dia, é "sonhar com o relativo". Isso porque muita gente boa não entendeu até agora que trabalhar dentro da complexidade política não é traição ou desistência, mas sim um amadurecimento de estratégias. Vários sectários de plantão disseram nos jornais: "O PT não ficou light!". Como se a vitória do PT fosse uma desistência de seus ideais "machos", uma "tucanização" do PT. A burrice e o oportunismo são invencíveis como a Pedra da Gávea, sabemo-lo. É justamente o contrário do que dizem: o PT que ganhou não é "light"; ganhou porque ficou mais "hard", mais adulto, assumindo defeitos, consultando o desejo do país. Essa vitória do PT faz o partido mais importante, porque ficou mais cor-de-rosa, sim, mais cambiante, se reconhecendo "dentro" da realidade brasileira suja, concreta, acabando aquela ridícula atitude de virgens dentro de um prostíbulo. Essa vitória vai aprofundar o nível teórico do PT, contemplando não apenas a luta de classes do século 19, como ensinavam as cartilhas da Academia das Ciências da URSS, mas também as dificuldades da democracia representativa, da intrincada rede das oligarquias e dos corporativismos. O PT vai ser obrigado a sair da posição do "quanto pior, melhor" e terá de se relacionar com o poder central, por verbas, impostos, vai ter de administrar orçamentos, vai obedecer a Lei de Responsabilidade Fiscal (que ele ainda tentou loucamente impedir com a ação ao STF...). O PT vai se sentir co-responsável por tudo o que nos acontece e que nos aconteceu, vai renascer como uma possibilidade de democracia social, e não como um bando de machos revolucionários de filme soviético.

PT e PSDB
Outra grande serventia dessa vitória do PT: vai melhorar o que resta do governo de FHC. Seu poder nas prefeituras será ótimo para assediar a agenda do governo central com o mundo real das microrreivindicações municipais, cotidianas. Isso provocará uma humanização do monetarismo frio que o assola, sob a égide do FMI.
Isso vai humanizar o PT também em relação aos tucanos. Aliás, se o PT, desde o início do governo FHC, tivesse sido um pouco mais generoso com FHC, que, no seu gesto mais interessante, aceitou a "realpolitik" do país, se o PT tivesse sido um pouco cooperativo, teria ajudado o governo a ficar menos amarrado às oligarquias clientelistas e fisiológicas. Mas isso, bem o sei, é romantismo aqui do ex-"sal da terra". FHC foi massacrado por ser um progressista que, sem consultar "bases" ou "comitês centrais", ousou fazer uma crítica prática das cartilhas da esquerda. Isso foi imperdoável para os sectários. Preferiram se aliar até com a UDR, só para ferrar o FHC, levando-o a erros horrendos, como apoiar o Roriz em Brasília.
O PT vai ter de se defrontar com nossos vícios coloniais, que moldaram um Estado loteado por velhos inquilinos, protegidos por uma estrutura jurídica escrita pela história dos privilégios seculares. O PT descobrirá que os "inimigos do povo" não são apenas o imperialismo ou a opressão dos burgueses, mas estão entranhados em todos nós, inclusive na cabeça da própria esquerda.
Essas vitórias do PT são úteis para o novo período político que virá, quando, depois do reformismo monetarista e do ajuste fiscal do governo FHC, chegar a hora de retomar um desenvolvimento mais distributivo e democrático. Quanto mais cor-de-rosa e mais bissexual, mais radical será o PT.

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