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MARCELO COELHO
Dignidade afegã desaparece perante a miséria e o medo
Acho que foi uma das cenas mais impressionantes
que já vi no cinema. Vinte ou 30
homens são filmados de costas, a
média distância, ocupando toda
a extensão horizontal da tela.
Olham para o céu. Começam então uma corrida trôpega, desconjuntada e súplice: são mutilados,
estão de muletas, e do céu caem,
de pára-quedas, pernas artificiais
doadas pela Cruz Vermelha, que
eles correm para pegar.
O lugar é o Afeganistão, claro, e
o filme é "O Caminho para Kandahar", de Mohsen Makhmalbaf.
A corrida dos aleijados lembra
um pouco, como numa versão às
avessas, a famosa cena de "Apocalipse Now", de Coppola, em que
mais e mais helicópteros negros,
como besouros gigantescos, vão
surgindo do horizonte em nossa
direção, ao som da "Cavalgada
das Valquírias", de Wagner.
Não prolongo essa comparação;
de resto, o filme de Makhmalbaf
não se preocupa minimamente
em ser pró ou contra os Estados
Unidos. Já eram enormes os problemas do Afeganistão antes que
os B-52 americanos viessem resolvê-los.
Há no filme tudo aquilo que sabemos: campos minados, mulheres de burca, clima de pavor constante, típico dos estados policiais.
Mas tudo se torna mais estranho,
mais absurdo do que nunca à medida que vemos algumas cenas do
cotidiano sob o Taleban.
A consulta médica, por exemplo. Uma mulher sofre de fome e
disenteria; não pode queixar-se
diretamente ao médico. Diz o que
sente a um menino a seu lado, este repete a frase para o médico,
que está separado dela por uma
cortina. Na cortina, há um buraco, onde a mulher encosta a boca
e depois um olho para ser examinada.
Ou as famosas madrassas, as escolas de religião dos talebans. Uns
80 meninos de dez ou 11 anos, cada qual com seu exemplar do Alcorão, recitam versículos sem parar, sob a supervisão de um mulá.
Um garoto não sabe a lição; é
mau aluno. Com bondade, o mulá informa que ele não mais poderá estudar ali. Tragédia: o garoto
não mais poderá seguir a carreira
religiosa. E provavelmente também não terá mais onde arranjar
comida.
Pois os alunos da madrassa comem pão. Fora da escola, separadas por um muro, há crianças famintas que não conseguiram lugar para estudar. Amontoam-se
para pegar os pães que sobram,
distribuídos pelo bom sacerdote.
Saí do filme com duas idéias deprimentes. A primeira é que a famosa dignidade do povo afegão,
sua dureza na resistência contra
levas e levas de inimigos, não parece de fato existir. Claro que há
fanatismo, claro que há resistência. Mas a miséria é tanta que cada um faz o que pode para sobreviver: do menino que procura arrancar dólares da protagonista
da história ao mutilado que o
tempo todo trapaceia as enfermeiras da Cruz Vermelha.
A segunda idéia é ainda mais
triste. O medo por ali parece ser
tamanho, que até o bombardeio
americano surge (aos olhos de
quem vê o filme, não de quem está lá, imagino) apenas como uma
desgraça, entre muitas outras.
Quem viaja pela estrada pode
ser morto por um bandido; mas
pode ser morto também pelas patrulhas do Taleban, que fazem revistas à cata de qualquer material
suspeito, como algum instrumento musical. Ou pode morrer na
explosão de uma mina ou morrer
de fome e das doenças do Quarto
Mundo.
É justamente esse sentimento de
desvalorização geral da pessoa
humana que a história contada
por Makhmalbaf vem justamente
contestar. Uma jornalista afegã,
que vive atualmente no Canadá,
resolve enfrentar todos os riscos
de um retorno à pátria para encontrar a irmã. Pretende convencê-la a não cometer suicídio. O filme todo se organiza, assim, em
torno da salvação de uma única
vida -enquanto vemos morte e
desespero em toda parte, numa
desgraça coletiva de proporções
inacreditáveis.
O que parece mais desesperador, aliás, é o fato de não ser fácil
encontrar as origens, os causadores desse estado de total destruição de um país. Os russos? O Taleban? Os ingleses? Os americanos?
Os paquistaneses? Todos, talvez.
O que vemos é uma sociedade infernal, que parece ter sido inventada por um louco. Como personificação do mal e do extremismo, claro que Bin Laden e o mulá
Omar servem à maravilha; mas,
supondo que sejam derrotados, o
que é desejável, não há como garantir que a situação melhore
muito.
Já ouvi dizerem que "o Afeganistão é aqui"; esse lema bombástico é usado para reclamar dos assaltos, da miséria, até dos congestionamentos de tráfego. Exageros
à parte, serve para que não nos esqueçamos dos absurdos de nosso
próprio país.
O fato é que, mais uma vez, Fernando Henrique vai-se mostrando um sujeito de sorte. A "população" (não sei bem o que é isso,
mas imagino que seja o tipo de
pessoa que responde a pesquisas)
vai-se entregando a uma nova
onda de amor pelo Brasil. Frase
brega, essa. De qualquer modo,
no imaginário eleitoral uma oposição vermelha contrasta com as
cores verde-e-amarela da Presidência. Cordialidade, conciliação, conformismo voltam a pegar
bem. Tudo chega a assumir um ar
meio cafona, anos 70, a que o
atual governo, diga-se isso em seu
favor, até que se mostra razoavelmente refratário.
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