São Paulo, quarta-feira, 07 de novembro de 2001

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MARCELO COELHO

Dignidade afegã desaparece perante a miséria e o medo

Acho que foi uma das cenas mais impressionantes que já vi no cinema. Vinte ou 30 homens são filmados de costas, a média distância, ocupando toda a extensão horizontal da tela. Olham para o céu. Começam então uma corrida trôpega, desconjuntada e súplice: são mutilados, estão de muletas, e do céu caem, de pára-quedas, pernas artificiais doadas pela Cruz Vermelha, que eles correm para pegar.
O lugar é o Afeganistão, claro, e o filme é "O Caminho para Kandahar", de Mohsen Makhmalbaf. A corrida dos aleijados lembra um pouco, como numa versão às avessas, a famosa cena de "Apocalipse Now", de Coppola, em que mais e mais helicópteros negros, como besouros gigantescos, vão surgindo do horizonte em nossa direção, ao som da "Cavalgada das Valquírias", de Wagner.
Não prolongo essa comparação; de resto, o filme de Makhmalbaf não se preocupa minimamente em ser pró ou contra os Estados Unidos. Já eram enormes os problemas do Afeganistão antes que os B-52 americanos viessem resolvê-los.
Há no filme tudo aquilo que sabemos: campos minados, mulheres de burca, clima de pavor constante, típico dos estados policiais. Mas tudo se torna mais estranho, mais absurdo do que nunca à medida que vemos algumas cenas do cotidiano sob o Taleban.
A consulta médica, por exemplo. Uma mulher sofre de fome e disenteria; não pode queixar-se diretamente ao médico. Diz o que sente a um menino a seu lado, este repete a frase para o médico, que está separado dela por uma cortina. Na cortina, há um buraco, onde a mulher encosta a boca e depois um olho para ser examinada.
Ou as famosas madrassas, as escolas de religião dos talebans. Uns 80 meninos de dez ou 11 anos, cada qual com seu exemplar do Alcorão, recitam versículos sem parar, sob a supervisão de um mulá. Um garoto não sabe a lição; é mau aluno. Com bondade, o mulá informa que ele não mais poderá estudar ali. Tragédia: o garoto não mais poderá seguir a carreira religiosa. E provavelmente também não terá mais onde arranjar comida.
Pois os alunos da madrassa comem pão. Fora da escola, separadas por um muro, há crianças famintas que não conseguiram lugar para estudar. Amontoam-se para pegar os pães que sobram, distribuídos pelo bom sacerdote.
Saí do filme com duas idéias deprimentes. A primeira é que a famosa dignidade do povo afegão, sua dureza na resistência contra levas e levas de inimigos, não parece de fato existir. Claro que há fanatismo, claro que há resistência. Mas a miséria é tanta que cada um faz o que pode para sobreviver: do menino que procura arrancar dólares da protagonista da história ao mutilado que o tempo todo trapaceia as enfermeiras da Cruz Vermelha.
A segunda idéia é ainda mais triste. O medo por ali parece ser tamanho, que até o bombardeio americano surge (aos olhos de quem vê o filme, não de quem está lá, imagino) apenas como uma desgraça, entre muitas outras.
Quem viaja pela estrada pode ser morto por um bandido; mas pode ser morto também pelas patrulhas do Taleban, que fazem revistas à cata de qualquer material suspeito, como algum instrumento musical. Ou pode morrer na explosão de uma mina ou morrer de fome e das doenças do Quarto Mundo.
É justamente esse sentimento de desvalorização geral da pessoa humana que a história contada por Makhmalbaf vem justamente contestar. Uma jornalista afegã, que vive atualmente no Canadá, resolve enfrentar todos os riscos de um retorno à pátria para encontrar a irmã. Pretende convencê-la a não cometer suicídio. O filme todo se organiza, assim, em torno da salvação de uma única vida -enquanto vemos morte e desespero em toda parte, numa desgraça coletiva de proporções inacreditáveis.
O que parece mais desesperador, aliás, é o fato de não ser fácil encontrar as origens, os causadores desse estado de total destruição de um país. Os russos? O Taleban? Os ingleses? Os americanos? Os paquistaneses? Todos, talvez. O que vemos é uma sociedade infernal, que parece ter sido inventada por um louco. Como personificação do mal e do extremismo, claro que Bin Laden e o mulá Omar servem à maravilha; mas, supondo que sejam derrotados, o que é desejável, não há como garantir que a situação melhore muito.
 
Já ouvi dizerem que "o Afeganistão é aqui"; esse lema bombástico é usado para reclamar dos assaltos, da miséria, até dos congestionamentos de tráfego. Exageros à parte, serve para que não nos esqueçamos dos absurdos de nosso próprio país.
O fato é que, mais uma vez, Fernando Henrique vai-se mostrando um sujeito de sorte. A "população" (não sei bem o que é isso, mas imagino que seja o tipo de pessoa que responde a pesquisas) vai-se entregando a uma nova onda de amor pelo Brasil. Frase brega, essa. De qualquer modo, no imaginário eleitoral uma oposição vermelha contrasta com as cores verde-e-amarela da Presidência. Cordialidade, conciliação, conformismo voltam a pegar bem. Tudo chega a assumir um ar meio cafona, anos 70, a que o atual governo, diga-se isso em seu favor, até que se mostra razoavelmente refratário.


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