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Crítica/"O Seminarista"
Artifícios de estilo não conseguem salvar trama de Fonseca
Primeiro livro do autor depois de deixar a Companhia das Letras usa latim, poesia e muitas trívias em história policial
ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
"O Seminarista", novo
livro de Rubem Fonseca, agora em nova
editora (trocou a Companhia
das Letras pela Agir, do grupo
Ediouro), não traz infelizmente nenhum novo estímulo para
quem tem saudade de sua prosa
dos anos 60 e 70. Trata-se da
história de um assassino de aluguel, que atende pelo codinome
de Especialista, e é considerado
o melhor profissional do gênero no Rio de Janeiro.
A sua assinatura é um tiro na
cabeça, dado por uma pistola
Glock, usada com silenciador.
Ama a pistola e o serviço bem
feito, sem nenhum sadismo
particular. A certa altura, acha
que tem dinheiro suficiente para viver e, sem maiores explicações, decide se aposentar.
Aí iniciam os seus problemas,
pois, ao mesmo tempo em que
começa a ser perseguido por
antigos companheiros de profissão, aparentemente contratados para liquidá-lo, se apaixona pela filha do homem que
costumava empresariar seus
serviços, o qual também custa a
aceitar a sua aposentadoria
precoce.
Contudo, Fonseca, experiente, não confia apenas à intriga
policial batida e ao costumeiro
estilo seco da narrativa o que
deveria ser o núcleo do interesse do romance. Saca, então,
com o mesmo profissionalismo
do Especialista, dois artifícios
do estilo que deveriam dar graça à história:
1) o pistoleiro ama literatura,
em particular, poesia; leitor de
Camões, experto no Weltinnenraum rilkiano, contemplador
do pôr do sol de Keats, ele não
perde uma chance de ler para a
amada assustada belos poemas
do cânone ocidental;
2) o assassino foi seminarista
e sabe latim; não perde uma
ocasião de despedir frases sentenciosas do Lácio como comentário ao que se passa no
submundo da violência policial
ou como réplica fulminante na
conversação. Ou seja, antes de
liquidar com a Glock, o Especialista humilha com Sêneca,
Cícero e são João Crisóstomo.
Esses dois artifícios poderiam funcionar, ao menos como piada, se tanto o latim como
a poesia não tivessem o mesmo
estatuto da trívia que o narrador encaixa no texto a pretexto
de tudo: do preparo do bacalhau Gomes de Sá à biografia de
Lima Barreto; da qualidade dos
vinhos brancos à operação Valquíria; da batalha de Alcácer-Quibir à implantação de uma
prótese dentária de titânio ou
ao nome científico da ave conhecida como perna-de-pau.
Poesia ou latim, ambos parecem tão mal encaixados nas circunstâncias da narração, tão
forçados em suas tiradas espirituosas, que a sofisticação do assassino afunda junto com a imitação farsesca de filmes noir
americanos.
Há um terceiro artifício, que
é o verdadeiro pulo do gato de
Fonseca, no caso de não funcionarem os outros dois: em uma
simples página, ao início do segundo terço do livro, uma personagem assassinada pelo Especialista reaparece viva na trama. A ocorrência, bem considerada, dá a dois terços do relato
um estatuto alucinatório, como
efeito da paranoia.
Reforça a alucinação o fato de
que os bandidos usuais vão sendo substituídos pelas personagens da memória do seminarista, até que o próprio reapareça
e permita finalmente ao Especialista usufruir da difícil aposentadoria. Essa é a página interessante de todo o romance.
Melhor pensada, daria outro livro. Ocorre que, afora ela, restam as outras 180 nas quais o latinório de almanaque e a poesia
gauche são a Glock a disparar,
sem silenciador e sem perdão,
contra toda vontade de leitura.
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na
Unicamp.
O SEMINARISTA
Autor: Rubem Fonseca
Editora: Agir
Quanto: R$ 37 (184 págs.)
Avaliação: ruim
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