São Paulo, sábado, 07 de novembro de 2009

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Crítica/"O Seminarista"

Artifícios de estilo não conseguem salvar trama de Fonseca

Primeiro livro do autor depois de deixar a Companhia das Letras usa latim, poesia e muitas trívias em história policial

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Seminarista", novo livro de Rubem Fonseca, agora em nova editora (trocou a Companhia das Letras pela Agir, do grupo Ediouro), não traz infelizmente nenhum novo estímulo para quem tem saudade de sua prosa dos anos 60 e 70. Trata-se da história de um assassino de aluguel, que atende pelo codinome de Especialista, e é considerado o melhor profissional do gênero no Rio de Janeiro.
A sua assinatura é um tiro na cabeça, dado por uma pistola Glock, usada com silenciador. Ama a pistola e o serviço bem feito, sem nenhum sadismo particular. A certa altura, acha que tem dinheiro suficiente para viver e, sem maiores explicações, decide se aposentar.
Aí iniciam os seus problemas, pois, ao mesmo tempo em que começa a ser perseguido por antigos companheiros de profissão, aparentemente contratados para liquidá-lo, se apaixona pela filha do homem que costumava empresariar seus serviços, o qual também custa a aceitar a sua aposentadoria precoce.
Contudo, Fonseca, experiente, não confia apenas à intriga policial batida e ao costumeiro estilo seco da narrativa o que deveria ser o núcleo do interesse do romance. Saca, então, com o mesmo profissionalismo do Especialista, dois artifícios do estilo que deveriam dar graça à história:
1) o pistoleiro ama literatura, em particular, poesia; leitor de Camões, experto no Weltinnenraum rilkiano, contemplador do pôr do sol de Keats, ele não perde uma chance de ler para a amada assustada belos poemas do cânone ocidental;
2) o assassino foi seminarista e sabe latim; não perde uma ocasião de despedir frases sentenciosas do Lácio como comentário ao que se passa no submundo da violência policial ou como réplica fulminante na conversação. Ou seja, antes de liquidar com a Glock, o Especialista humilha com Sêneca, Cícero e são João Crisóstomo.
Esses dois artifícios poderiam funcionar, ao menos como piada, se tanto o latim como a poesia não tivessem o mesmo estatuto da trívia que o narrador encaixa no texto a pretexto de tudo: do preparo do bacalhau Gomes de Sá à biografia de Lima Barreto; da qualidade dos vinhos brancos à operação Valquíria; da batalha de Alcácer-Quibir à implantação de uma prótese dentária de titânio ou ao nome científico da ave conhecida como perna-de-pau. Poesia ou latim, ambos parecem tão mal encaixados nas circunstâncias da narração, tão forçados em suas tiradas espirituosas, que a sofisticação do assassino afunda junto com a imitação farsesca de filmes noir americanos.
Há um terceiro artifício, que é o verdadeiro pulo do gato de Fonseca, no caso de não funcionarem os outros dois: em uma simples página, ao início do segundo terço do livro, uma personagem assassinada pelo Especialista reaparece viva na trama. A ocorrência, bem considerada, dá a dois terços do relato um estatuto alucinatório, como efeito da paranoia.
Reforça a alucinação o fato de que os bandidos usuais vão sendo substituídos pelas personagens da memória do seminarista, até que o próprio reapareça e permita finalmente ao Especialista usufruir da difícil aposentadoria. Essa é a página interessante de todo o romance. Melhor pensada, daria outro livro. Ocorre que, afora ela, restam as outras 180 nas quais o latinório de almanaque e a poesia gauche são a Glock a disparar, sem silenciador e sem perdão, contra toda vontade de leitura.



ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Unicamp.
O SEMINARISTA

Autor: Rubem Fonseca
Editora: Agir
Quanto: R$ 37 (184 págs.)
Avaliação: ruim




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