São Paulo, sábado, 7 de novembro de 1998

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TEATRO - CRÍTICA
Cacilda! amplia os limites do poder do teatro

MARIO VITOR SANTOS
da Reportagem Local

Miroel Silveira, o crítico de teatro que descobriu Cacilda Becker, certa vez escreveu: "Tive a primeira Cacilda e creio que a tive melhor".
A frase apontava para a variedade de faces do mito, o que também ocorre na "Cacilda!" de José Celso Martinez Corrêa, em cartaz no teatro Oficina, com Bete Coelho no papel da atriz e participação de Giulia Gam no elenco.
"Cacilda!" é uma peça que apresenta vários duplos contraditórios, que a direção de Zé mantém em equilíbrio instável, sob uma permanente "antagonia", em busca de um "inxorcismo", para usar termos da peça.
Pode-se assisti-la como a encenação de um julgamento, seguido de uma execução cruel. Ou como peça moral, em que o bem enfrenta o mal, ou ainda como relato alegórico-biográfico, como expiação coletiva comandada por um criador (o "Robespierre de Araraquara", denominação dada a Zé Celso numa peça de Abílio Pereira de Almeida na década de 60) empenhado em fazer renascer e destruir até as ruínas do teatro de Cacilda.
É ela que está no banco dos réus já na representação do "Auto da Barca do Inferno", em que Cacilda atuou e é um dos diversos pontos altos do espetáculo.
Nos extremos superiores do Oficina, na beira dos camarins, céu e inferno reivindicam a heroína para si. A peça engendra o combate definitivo entre o teatro do sagrado, na definição do encenador inglês Peter Brook, e a linhagem muito variada do teatro comercial e convencional de que o próprio Oficina descende, embora conteste, e de que Cacilda Becker se fez ícone em coma.
A estrutura do espetáculo apela aos extremos, o diretor mostra inusitada habilidade para compor um andamento romântico clássico no primeiro ato, em que a excelência dos valores individuais do elenco é crucial.
Nessa primeira parte, a heroína é uma personagem dramática típica, de viés chapliniano, assolada pela miséria, irredenta frente às injustiças desse mundo. Mesmo como Cacilda-Estragon, de chapéu coco, ela espera Godot e se lamenta, quase aos prantos, numa frase típica: "Eu queria tanto ser feliz...".
O foco do primeiro ato se dirige a épocas e locais bem definidos: Pirassununga, São Paulo, Santos, Rio. A sucessão anedótica de episódios biográficos prende a atenção de maneira tradicional, mostrando uma faceta descartada pelo Oficina desde os tempos de... Cacilda: realismo e unidade de tempo a serviço da apresentação clara da linha evolutiva de uma situação dramática.
O clima é dominado pela performance, perfeita em todos os sentidos, de Bete Coelho, a quem não faltam meios -respiração, poder vocal, timbre, largueza dos gestos, um certo desespero no espírito- para ocupar a sala-terreiro da rua Jaceguai.
Até Zé Celso protagoniza uma cena realisticamente "séria", como o avô da jovem Cacilda. Grande atriz que é, Ligia Cortez projeta uma dona Alzira entre dois mundos, hesitante a princípio, decidida depois a servir como ente propiciador das energias existentes na filha artista. Sua Brízida, com alusões ao cabelo e ao cinto de castidade de Ruth Escobar, é hilariante.
Marcelo Drummond brilha no papel de Seu Yáconis, o pai de Cacilda, e também no de Miroel Silveira, em que transpira uma certa ironia aos críticos teatrais. Faz um estilo sem estilo, imperfeito, sem ignorar a existência da platéia.
No segundo ato, a unidade se fragmenta. O coro dos "anarquistas coroados", a coluna vertebral do Oficina, caminha para o poder.
Entra em cena ta mb ém Giulia Gam, que faz uma Cacilda atriz, em diversos papéis que representou. Sua interpretação constitui um contraponto, a brandura de alguém no limite da vida. A fragilidade que transmite é adequada ao coma de Cacilda, à crise artística que vivia naquele final dos anos 60, à sua divisão diante do teatro que surgia.
O tom do espetáculo tende então para o barroco, mas a luta de um "bem" contra um "mal" permanece no pano de fundo, Cacilda transitando de um pólo a outro. Sobrepõem-se referências (à morte do irmão do diretor, Luiz Antônio Martinez Corrêa, e à de uma atriz do Oficina nos anos 60), vodus, tabus saídos de forma bruta como que diretamente da alma do autor, sem maiores explicações. O envolvimento do primeiro ato dá lugar a um certo distanciamento.
O esperado desenlace trágico da heroína ocorre na forma de execução cerimonial, um êxtase póstumo (ou "pós-thomas", até com um "Gerald Thomas" em cena), como a anunciar uma redenção da cultura brasileira levada ao coma.
É o teatro que está no centro, como sempre nas peças de Zé Celso. Não é à toa que de novo Ligia Cortez, no papel da enlouquecida Henriette Morineau, repete as palavras da grande atriz, que, em 1983, deixara o sanatório para participar de uma leitura de "Rei da Vela" no Rio: "O teatro recuou, meu filho", dizia ela a Zé Celso e na peça.
É este recuo que Zé Celso se nega a aceitar, numa trajetória de coerência ao longo das décadas, alargando, contra todas as evidências da realidade, os limites do poder do teatro.
˛

Peça: Cacilda!
Texto e direção: José Celso Martinez Corrêa
Com: Bete Coelho, Giulia Gam, Lígia Cortez, Iara Jamra, Renée Gumiel e outros
Quando: sex. e sáb., às 21h; dom., às 19h
Onde: teatro Oficina (r. Jaceguai, 520, Bela Vista, tel. 011/3104-0678)
Quanto: de R$ 25 a R$ 30




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