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TEATRO - CRÍTICA
Cacilda! amplia os limites do poder do teatro
MARIO VITOR SANTOS
da Reportagem Local
Miroel Silveira, o crítico de teatro
que descobriu Cacilda Becker, certa vez escreveu: "Tive a primeira
Cacilda e creio que a tive melhor".
A frase apontava para a variedade de faces do mito, o que também
ocorre na "Cacilda!" de José Celso
Martinez Corrêa, em cartaz no teatro Oficina, com Bete Coelho no
papel da atriz e participação de
Giulia Gam no elenco.
"Cacilda!" é uma peça que apresenta vários duplos contraditórios,
que a direção de Zé mantém em
equilíbrio instável, sob uma permanente "antagonia", em busca
de um "inxorcismo", para usar
termos da peça.
Pode-se assisti-la como a encenação de um julgamento, seguido
de uma execução cruel. Ou como
peça moral, em que o bem enfrenta
o mal, ou ainda como relato alegórico-biográfico, como expiação
coletiva comandada por um criador (o "Robespierre de Araraquara", denominação dada a Zé Celso
numa peça de Abílio Pereira de Almeida na década de 60) empenhado em fazer renascer e destruir até
as ruínas do teatro de Cacilda.
É ela que está no banco dos réus
já na representação do "Auto da
Barca do Inferno", em que Cacilda
atuou e é um dos diversos pontos
altos do espetáculo.
Nos extremos superiores do Oficina, na beira dos camarins, céu e
inferno reivindicam a heroína para
si. A peça engendra o combate definitivo entre o teatro do sagrado,
na definição do encenador inglês
Peter Brook, e a linhagem muito
variada do teatro comercial e convencional de que o próprio Oficina
descende, embora conteste, e de
que Cacilda Becker se fez ícone em
coma.
A estrutura do espetáculo apela
aos extremos, o diretor mostra
inusitada habilidade para compor
um andamento romântico clássico
no primeiro ato, em que a excelência dos valores individuais do elenco é crucial.
Nessa primeira parte, a heroína é
uma personagem dramática típica,
de viés chapliniano, assolada pela
miséria, irredenta frente às injustiças desse mundo. Mesmo como
Cacilda-Estragon, de chapéu coco,
ela espera Godot e se lamenta, quase aos prantos, numa frase típica:
"Eu queria tanto ser feliz...".
O foco do primeiro ato se dirige a
épocas e locais bem definidos: Pirassununga, São Paulo, Santos,
Rio. A sucessão anedótica de episódios biográficos prende a atenção de maneira tradicional, mostrando uma faceta descartada pelo
Oficina desde os tempos de... Cacilda: realismo e unidade de tempo
a serviço da apresentação clara da
linha evolutiva de uma situação
dramática.
O clima é dominado pela performance, perfeita em todos os sentidos, de Bete Coelho, a quem não
faltam meios -respiração, poder
vocal, timbre, largueza dos gestos,
um certo desespero no espírito-
para ocupar a sala-terreiro da rua
Jaceguai.
Até Zé Celso protagoniza uma
cena realisticamente "séria", como
o avô da jovem Cacilda. Grande
atriz que é, Ligia Cortez projeta
uma dona Alzira entre dois mundos, hesitante a princípio, decidida
depois a servir como ente propiciador das energias existentes na
filha artista. Sua Brízida, com alusões ao cabelo e ao cinto de castidade de Ruth Escobar, é hilariante.
Marcelo Drummond brilha no
papel de Seu Yáconis, o pai de Cacilda, e também no de Miroel Silveira, em que transpira uma certa
ironia aos críticos teatrais. Faz um
estilo sem estilo, imperfeito, sem
ignorar a existência da platéia.
No segundo ato, a unidade se
fragmenta. O coro dos "anarquistas coroados", a coluna vertebral
do Oficina, caminha para o poder.
Entra em cena ta mb ém Giulia
Gam, que faz uma Cacilda atriz,
em diversos papéis que representou. Sua interpretação constitui
um contraponto, a brandura de alguém no limite da vida. A fragilidade que transmite é adequada ao
coma de Cacilda, à crise artística
que vivia naquele final dos anos 60,
à sua divisão diante do teatro que
surgia.
O tom do espetáculo tende então
para o barroco, mas a luta de um
"bem" contra um "mal" permanece no pano de fundo, Cacilda transitando de um pólo a outro. Sobrepõem-se referências (à morte do
irmão do diretor, Luiz Antônio
Martinez Corrêa, e à de uma atriz
do Oficina nos anos 60), vodus, tabus saídos de forma bruta como
que diretamente da alma do autor,
sem maiores explicações. O envolvimento do primeiro ato dá lugar a
um certo distanciamento.
O esperado desenlace trágico da
heroína ocorre na forma de execução cerimonial, um êxtase póstumo (ou "pós-thomas", até com um
"Gerald Thomas" em cena), como
a anunciar uma redenção da cultura brasileira levada ao coma.
É o teatro que está no centro, como sempre nas peças de Zé Celso.
Não é à toa que de novo Ligia Cortez, no papel da enlouquecida Henriette Morineau, repete as palavras da grande atriz, que, em 1983,
deixara o sanatório para participar
de uma leitura de "Rei da Vela" no
Rio: "O teatro recuou, meu filho",
dizia ela a Zé Celso e na peça.
É este recuo que Zé Celso se nega
a aceitar, numa trajetória de coerência ao longo das décadas, alargando, contra todas as evidências
da realidade, os limites do poder
do teatro.
˛
Peça: Cacilda!
Texto e direção: José Celso Martinez Corrêa
Com: Bete Coelho, Giulia Gam, Lígia Cortez,
Iara Jamra, Renée Gumiel e outros
Quando: sex. e sáb., às 21h; dom., às 19h
Onde: teatro Oficina (r. Jaceguai, 520, Bela
Vista, tel. 011/3104-0678)
Quanto: de R$ 25 a R$ 30
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