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BERNARDO CARVALHO
O sentido autofágico
Foi-se o tempo dos filósofos,
quando jovens do mundo inteiro confluíam para os cursos de
Michel Foucault e Gilles Deleuze,
em Paris, como quem vai a um
concerto de rock, acreditando que
as idéias e os conceitos ali apresentados seriam capazes de reinventar o mundo. Hoje, como se já
não bastasse a desilusão da realidade, cuja truculência reduziu espantosamente o campo da imaginação, um pensamento de ambições no máximo sociológicas tomou o lugar da filosofia e se ocupa de mostrar, servindo-se dos
desdobramentos da história recente, o quanto havia de idealismo por trás de tudo aquilo.
Esse estreitamento geral terminou por incitar alguns artistas a
tentar reagir e inventar uma mitologia pessoal que, como num
passe de mágica, pudesse recriar o
mundo. O curioso é que, em sintonia com o presente, esses sejam
mundos fechados em si mesmos,
onde o sentido é autofágico, como
se a arte tivesse perdido o poder
idealista da invenção e tivesse
que se contentar com a representação do esvaziamento que vê a
sua volta. Por menos realista que
essa representação possa parecer
à primeira vista, por mais idiossincrática e pessoal, ela é o reflexo
de um estreitamento da consciência e da imaginação, acuadas
diante da desilusão da realidade.
Assim como Matthew Barney,
que teve seu ciclo "Cremaster" recentemente exibido em São Paulo, o artista, coreógrafo e encenador belga Jan Fabre, cuja retrospectiva de filmes e desenhos fica
em cartaz até 19 de dezembro no
Museu de Arte Contemporânea
de Lyon, na França, também se
propõe a criar um universo autônomo. "Deve haver um sentimento de que a obra é um cosmos",
disse Fabre numa entrevista.
Díspares em vários aspectos, os
dois artistas enfrentam o mesmo
dilema: que arte é possível num
mundo desiludido? Ambos, que
estão entre os nomes mais notáveis da arte ocidental hoje, são
obcecados pela idéia da metamorfose (de corpos polimorfos e
erotizados que se reinventam, de
seres que se transformam -de
comunidades de insetos e do poder renovador do sangue, no caso
de Fabre) como metáfora da possibilidade de recriação do mundo. Mas também estão marcados
por imagens de sacrifício, automutilação e masoquismo.
A imagem da metamorfose que
encenam, imbuídos do papel de
demiurgos, está mais para a autofagia do que para uma verdadeira transformação. Barney tenta
reconstruir o mundo, distorcendo
os clichês do imaginário americano, por uma via radicalmente
perversa e pessoal, e termina, como Fabre a seu modo, por materializar um universo tautológico,
onde os sentidos refletem a si mesmos, esvaziando-se no próprio
hermetismo.
Em entrevistas, Fabre fala de
"criar uma zona de energia onde
reina uma outra espécie de vida,
um futuro", mas ao mesmo tempo parece ter consciência dos próprios limites: "Minha obra quer a
possibilidade de um novo homem. A obsessão é que eu queira
realizar isso me dando conta da
impossibilidade". Essa consciência termina por fazer com que o
sonho de recriação seja também
um processo de autodestruição e
sufocação. A renovação passa pela autofagia e pelo esgotamento
dos sentidos.
No título da retrospectiva em
Lyon, Fabre cita Rembrandt: "Este é o lugar em que a morte se alegra de vir socorrer a vida". É preciso morrer primeiro, para depois
renascer. "Acredito no inexistente. Acredito naquilo que ainda
não existe. (...) É uma fé por desespero. (...) O sorriso vem depois da
extinção, e é nesse clima que o espectador contrai a sua aliança secreta com a minha obra", afirma
Fabre.
O crítico Stefan Hertmans, discorrendo sobre a obra do artista
belga, fala de um "mundo que só
obedece às próprias leis", o "mundo estático e mítico do emblema";
fala da "estranha impressão que
nos leva a suspeitar que não estejamos numa sala de teatro, mas
dentro do cérebro de um deus primitivo, que nos sonha"; do palco
que "já não é o terreno de interpretação dos atores, mas o interior de um crânio onde se desencadeiam sonhos invadidos de alegorias". Um teatro em que "o conceito se exprime sem nos esclarecer nada além, conservando todo
o seu mistério".
"Alguns dos meus desenhos parecem ser uma loucura em circuito fechado pelo fato de pertencerem ao mundo desses iniciados
que detêm o silêncio na tempestade", diz Fabre. Barney, por sua
vez, é fascinado pela franco-maçonaria, um sistema de emblemas
e sentidos igualmente fechados
em si mesmos, a serviço de uma
sociedade secreta.
Fabre e Barney materializam e
encenam imagens mentais e inconscientes, como se elas ainda
estivessem em estado bruto, antes
de se formarem os conceitos. Estão à procura do que ainda não
foi nomeado, de um novo sentido
e de uma nova infância para as
coisas, mas para isso é preciso antes fazê-las perder os nomes, esvaziá-las do sentido que carregam.
E é o que tentam com a criação
desses mundos autônomos e
claustrofóbicos.
Tudo desmoronaria se o sentido
viesse a se definir e a se entregar
ao espectador. Se as imagens chegassem a formar conceitos. Se a
metáfora fosse compreensível.
Tanto em Barney como em Fabre,
só a suposição do humor e da ironia, ou do mistério, pode salvar a
metáfora do ridículo e do lugar-comum. Porque talvez o que ela
tenha a dizer, no fundo, seja de
uma banalidade atroz.
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