São Paulo, terça-feira, 07 de dezembro de 2004

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BERNARDO CARVALHO

O sentido autofágico

Foi-se o tempo dos filósofos, quando jovens do mundo inteiro confluíam para os cursos de Michel Foucault e Gilles Deleuze, em Paris, como quem vai a um concerto de rock, acreditando que as idéias e os conceitos ali apresentados seriam capazes de reinventar o mundo. Hoje, como se já não bastasse a desilusão da realidade, cuja truculência reduziu espantosamente o campo da imaginação, um pensamento de ambições no máximo sociológicas tomou o lugar da filosofia e se ocupa de mostrar, servindo-se dos desdobramentos da história recente, o quanto havia de idealismo por trás de tudo aquilo.
Esse estreitamento geral terminou por incitar alguns artistas a tentar reagir e inventar uma mitologia pessoal que, como num passe de mágica, pudesse recriar o mundo. O curioso é que, em sintonia com o presente, esses sejam mundos fechados em si mesmos, onde o sentido é autofágico, como se a arte tivesse perdido o poder idealista da invenção e tivesse que se contentar com a representação do esvaziamento que vê a sua volta. Por menos realista que essa representação possa parecer à primeira vista, por mais idiossincrática e pessoal, ela é o reflexo de um estreitamento da consciência e da imaginação, acuadas diante da desilusão da realidade.
Assim como Matthew Barney, que teve seu ciclo "Cremaster" recentemente exibido em São Paulo, o artista, coreógrafo e encenador belga Jan Fabre, cuja retrospectiva de filmes e desenhos fica em cartaz até 19 de dezembro no Museu de Arte Contemporânea de Lyon, na França, também se propõe a criar um universo autônomo. "Deve haver um sentimento de que a obra é um cosmos", disse Fabre numa entrevista.
Díspares em vários aspectos, os dois artistas enfrentam o mesmo dilema: que arte é possível num mundo desiludido? Ambos, que estão entre os nomes mais notáveis da arte ocidental hoje, são obcecados pela idéia da metamorfose (de corpos polimorfos e erotizados que se reinventam, de seres que se transformam -de comunidades de insetos e do poder renovador do sangue, no caso de Fabre) como metáfora da possibilidade de recriação do mundo. Mas também estão marcados por imagens de sacrifício, automutilação e masoquismo.
A imagem da metamorfose que encenam, imbuídos do papel de demiurgos, está mais para a autofagia do que para uma verdadeira transformação. Barney tenta reconstruir o mundo, distorcendo os clichês do imaginário americano, por uma via radicalmente perversa e pessoal, e termina, como Fabre a seu modo, por materializar um universo tautológico, onde os sentidos refletem a si mesmos, esvaziando-se no próprio hermetismo.
Em entrevistas, Fabre fala de "criar uma zona de energia onde reina uma outra espécie de vida, um futuro", mas ao mesmo tempo parece ter consciência dos próprios limites: "Minha obra quer a possibilidade de um novo homem. A obsessão é que eu queira realizar isso me dando conta da impossibilidade". Essa consciência termina por fazer com que o sonho de recriação seja também um processo de autodestruição e sufocação. A renovação passa pela autofagia e pelo esgotamento dos sentidos.
No título da retrospectiva em Lyon, Fabre cita Rembrandt: "Este é o lugar em que a morte se alegra de vir socorrer a vida". É preciso morrer primeiro, para depois renascer. "Acredito no inexistente. Acredito naquilo que ainda não existe. (...) É uma fé por desespero. (...) O sorriso vem depois da extinção, e é nesse clima que o espectador contrai a sua aliança secreta com a minha obra", afirma Fabre.
O crítico Stefan Hertmans, discorrendo sobre a obra do artista belga, fala de um "mundo que só obedece às próprias leis", o "mundo estático e mítico do emblema"; fala da "estranha impressão que nos leva a suspeitar que não estejamos numa sala de teatro, mas dentro do cérebro de um deus primitivo, que nos sonha"; do palco que "já não é o terreno de interpretação dos atores, mas o interior de um crânio onde se desencadeiam sonhos invadidos de alegorias". Um teatro em que "o conceito se exprime sem nos esclarecer nada além, conservando todo o seu mistério".
"Alguns dos meus desenhos parecem ser uma loucura em circuito fechado pelo fato de pertencerem ao mundo desses iniciados que detêm o silêncio na tempestade", diz Fabre. Barney, por sua vez, é fascinado pela franco-maçonaria, um sistema de emblemas e sentidos igualmente fechados em si mesmos, a serviço de uma sociedade secreta.
Fabre e Barney materializam e encenam imagens mentais e inconscientes, como se elas ainda estivessem em estado bruto, antes de se formarem os conceitos. Estão à procura do que ainda não foi nomeado, de um novo sentido e de uma nova infância para as coisas, mas para isso é preciso antes fazê-las perder os nomes, esvaziá-las do sentido que carregam. E é o que tentam com a criação desses mundos autônomos e claustrofóbicos.
Tudo desmoronaria se o sentido viesse a se definir e a se entregar ao espectador. Se as imagens chegassem a formar conceitos. Se a metáfora fosse compreensível. Tanto em Barney como em Fabre, só a suposição do humor e da ironia, ou do mistério, pode salvar a metáfora do ridículo e do lugar-comum. Porque talvez o que ela tenha a dizer, no fundo, seja de uma banalidade atroz.


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