São Paulo, sexta-feira, 08 de fevereiro de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

O Arlequim, o Carnaval e o menino

Truffaldo ; Trivello e Mazzetto; Tracagno, Nespolino e Bagolio; Fritello, Pedrolino, Arlequim, Trappolino e Naccquerino. Não, não se trata de um time na formação clássica do 1-2-3-5, que era obrigatória quando se escalava uma equipe de futebol.
Tal como Nicola Fano lembrou em interessante artigo. Os 11 nomes acima citados são todos dedicados ao personagem saído do Cinquecento italiano, formando com o Pierrô e a Colombina a base de sustentação de todo um repertório popular que veio desaguar no Carnaval carioca e nas marchinhas de Lamartine Babo, Ary Barroso, Noel Rosa e Zé Ketti.
O "Arlecchino", como o diabo, teve e continua tendo diversos nomes. Aliás, ele próprio pode ser considerado um ente diabólico. Seu antepassado mais ilustre foi um tal de Alicchino, que Dante encontrou no oitavo círculo do inferno. Isto é um fato histórico. E como diabo que se preze, seria intemporal e universal. Temos o Hellequim, venerado e temido pelos franceses, que não passava de uma alma penada saída do cemitério de Arles.
Ao final do primeiro milênio, aí pelo ano 1000, ele também frequentava o imaginário de germânicos, escandinavos, saxônios e eslavos, sempre com nomes e ofícios parecidos. Nada demais que ao ser estruturado o teatro de palco, que podia ser montado numa carroça ou em qualquer espaço, ele ganhasse presença. Sozinho, como Hamlet, que tem dez anos a mais do que ele, ou na tradicional companhia que Mário Reis cantava num Carnaval dos anos 30: "Pierrô, Arlequim, Colombina vão a preços populares repetir o Carnaval".
Por falar nisso, deve-se recordar que em Carnaval mais recente, aí pelos anos 60, Zé Ketti colocou um Arlequim equivocado no meio de mil palhaços no salão. Equivocado porque, na marchinha do Zé Ketti, Arlequim está chorando pelo amor da Colombina, quando, na verdade, quem chora pelo amor da Colombina é o Pierrô, patrono incontestável de todos os cornos do mundo e da história, com seu bandolim prateado, seu rosto branco, banhado de melancolia e luar.
A tradição cinquentecesca faz do Arlequim o aproveitador contumaz das colombinas de todos os tempos e idades que, por isso ou aquilo, volta e meia desejam dar uma volta lá fora. Mesmo assim, não podemos esquecer que Leoncavallo, em sua ópera dedicada justamente aos palhaços, fez o Arlequim cantar uma belíssima serenata em que se autoproclama "povero Arlecchino". Um pobre amante, servidor não de dois amos, como queria Goldoni, mas de todos os amos. E Picasso, tempos depois, colocou sua colorida fantasia em alguns de seus personagens.
Alguns historiadores consideram que, com Arlequim no palco, vestido de losangos amarelos, azuis e verdes, o teatro tornou-se verdadeiramente um ofício. Resumindo todas as tramas do repertório universal, os três personagens da "Commedia dell'Arte" formavam o primeiro produto compacto da história, pois tudo finalmente se resumia nos três, bastando uma mulher e dois homens para, juntos ou separadamente, expressarem todas as venturas e desventuras do ser humano.
O teatro saía das arenas, dos pátios das igrejas e dos castelos, subia numa carroça e fazia o mambembe pelas aldeias e campos, levando "a preços populares" o enredo que, com as modificações de tempo e circunstância, atravessa a história da humanidade em geral, e de cada um de nós, em particular.
Como lembrei acima, insisto nesses "preços populares". Dos grandes gregos a Shakespeare, da "Commedia dell'Arte" ao Carnaval carioca, o público-alvo do teatro seria o homem comum, que se reconheceria aqui e ali naquele maravilhoso faz-de-conta que é o teatro e devia ser o Carnaval.
Escrevo tudo isso com remorso. Nunca me identifiquei muito com o teatro, nem com os carnavais -e dentro de dois dias estaremos entrando em mais um deles.
Para um menino do Rio, como eu, a primeira noção de teatro foi exatamente o Carnaval, tal como era feito e de certa forma continua sendo feito: um espetáculo, um show, que aos poucos foi se tornando uma espécie de ópera popular, com mais de mil palhaços no salão.
Meu pai, no tempo dele, já não achava que Pierrô, Arlequim e Colombina repetiam o Carnaval a preços tão populares assim, embora Mário Reis cantasse o contrário. Os lança-perfumes custavam caro e se quebravam, o rodo-metálico não era a mesma coisa, parecia um produto farmacêutico, bom mesmo era o lança-perfume de vidro, quando se quebrava era uma orgia de cheiros e de alucinação.
Não sei por que, sempre me fantasiaram de coisas simples, morcego, legionário, marinheiro do Rio Comprido, houve o ano em que saí de chinês, foi daí que nasceu meu pessimismo, minha birra com a vida e com a humanidade.
Nunca me vesti de Arlequim. Em compensação, nunca servi a dois amos, pelo menos ao mesmo tempo. Sempre me identifiquei com o Pierrô, o bandolim prateado, o rosto branco, banhado de luar.


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