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CARLOS HEITOR CONY
O Arlequim, o Carnaval e o menino
Truffaldo ; Trivello e
Mazzetto; Tracagno, Nespolino e Bagolio; Fritello, Pedrolino,
Arlequim, Trappolino e Naccquerino. Não, não se trata de um time na formação clássica do 1-2-3-5, que era obrigatória quando se
escalava uma equipe de futebol.
Tal como Nicola Fano lembrou
em interessante artigo. Os 11 nomes acima citados são todos dedicados ao personagem saído do
Cinquecento italiano, formando
com o Pierrô e a Colombina a base de sustentação de todo um repertório popular que veio desaguar no Carnaval carioca e nas
marchinhas de Lamartine Babo,
Ary Barroso, Noel Rosa e Zé Ketti.
O "Arlecchino", como o diabo,
teve e continua tendo diversos nomes. Aliás, ele próprio pode ser
considerado um ente diabólico.
Seu antepassado mais ilustre foi
um tal de Alicchino, que Dante
encontrou no oitavo círculo do inferno. Isto é um fato histórico. E
como diabo que se preze, seria intemporal e universal. Temos o
Hellequim, venerado e temido pelos franceses, que não passava de
uma alma penada saída do cemitério de Arles.
Ao final do primeiro milênio, aí
pelo ano 1000, ele também frequentava o imaginário de germânicos, escandinavos, saxônios e
eslavos, sempre com nomes e ofícios parecidos. Nada demais que
ao ser estruturado o teatro de palco, que podia ser montado numa
carroça ou em qualquer espaço,
ele ganhasse presença. Sozinho,
como Hamlet, que tem dez anos a
mais do que ele, ou na tradicional
companhia que Mário Reis cantava num Carnaval dos anos 30:
"Pierrô, Arlequim, Colombina
vão a preços populares repetir o
Carnaval".
Por falar nisso, deve-se recordar
que em Carnaval mais recente, aí
pelos anos 60, Zé Ketti colocou
um Arlequim equivocado no
meio de mil palhaços no salão.
Equivocado porque, na marchinha do Zé Ketti, Arlequim está
chorando pelo amor da Colombina, quando, na verdade, quem
chora pelo amor da Colombina é
o Pierrô, patrono incontestável de
todos os cornos do mundo e da
história, com seu bandolim prateado, seu rosto branco, banhado
de melancolia e luar.
A tradição cinquentecesca faz
do Arlequim o aproveitador contumaz das colombinas de todos os
tempos e idades que, por isso ou
aquilo, volta e meia desejam dar
uma volta lá fora. Mesmo assim,
não podemos esquecer que Leoncavallo, em sua ópera dedicada
justamente aos palhaços, fez o Arlequim cantar uma belíssima serenata em que se autoproclama
"povero Arlecchino". Um pobre
amante, servidor não de dois
amos, como queria Goldoni, mas
de todos os amos. E Picasso, tempos depois, colocou sua colorida
fantasia em alguns de seus personagens.
Alguns historiadores consideram que, com Arlequim no palco,
vestido de losangos amarelos,
azuis e verdes, o teatro tornou-se
verdadeiramente um ofício. Resumindo todas as tramas do repertório universal, os três personagens da "Commedia dell'Arte"
formavam o primeiro produto
compacto da história, pois tudo
finalmente se resumia nos três,
bastando uma mulher e dois homens para, juntos ou separadamente, expressarem todas as venturas e desventuras do ser humano.
O teatro saía das arenas, dos
pátios das igrejas e dos castelos,
subia numa carroça e fazia o
mambembe pelas aldeias e campos, levando "a preços populares"
o enredo que, com as modificações de tempo e circunstância,
atravessa a história da humanidade em geral, e de cada um de
nós, em particular.
Como lembrei acima, insisto
nesses "preços populares". Dos
grandes gregos a Shakespeare, da
"Commedia dell'Arte" ao Carnaval carioca, o público-alvo do teatro seria o homem comum, que se
reconheceria aqui e ali naquele
maravilhoso faz-de-conta que é o
teatro e devia ser o Carnaval.
Escrevo tudo isso com remorso.
Nunca me identifiquei muito com
o teatro, nem com os carnavais
-e dentro de dois dias estaremos
entrando em mais um deles.
Para um menino do Rio, como
eu, a primeira noção de teatro foi
exatamente o Carnaval, tal como
era feito e de certa forma continua sendo feito: um espetáculo,
um show, que aos poucos foi se
tornando uma espécie de ópera
popular, com mais de mil palhaços no salão.
Meu pai, no tempo dele, já não
achava que Pierrô, Arlequim e
Colombina repetiam o Carnaval
a preços tão populares assim, embora Mário Reis cantasse o contrário. Os lança-perfumes custavam caro e se quebravam, o rodo-metálico não era a mesma coisa,
parecia um produto farmacêutico, bom mesmo era o lança-perfume de vidro, quando se quebrava
era uma orgia de cheiros e de alucinação.
Não sei por que, sempre me fantasiaram de coisas simples, morcego, legionário, marinheiro do
Rio Comprido, houve o ano em
que saí de chinês, foi daí que nasceu meu pessimismo, minha birra
com a vida e com a humanidade.
Nunca me vesti de Arlequim.
Em compensação, nunca servi a
dois amos, pelo menos ao mesmo
tempo. Sempre me identifiquei
com o Pierrô, o bandolim prateado, o rosto branco, banhado de
luar.
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