São Paulo, sexta-feira, 08 de fevereiro de 2008

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CARLOS HEITOR CONY

A história banal daquele homem


Os cabelos começavam a rarear, os olhos ficaram miúdos, tudo ameaçava decadência

ANTONIO Lobianco Filho sentia-se cansado. Botava no papel uns números complicados, que aparentemente nada significavam. Repetia a seqüência 3712 -números chaves da cabala. Depois colocava uma cifra -o seu salário atual. Embaixo, outra quantia (seus compromissos mensais) e com algarismos maiores escrevia o saldo: pouco mais de um salário mínimo. Estudara tanto, formara-se em direito, fizera cursos especializados, e ali estava, reduzido à realidade mesquinha que nem doía mais.
Na semana seguinte, teria um encontro terrível com o calendário: 21 de março. Faria 50 anos. Sofria todas as vezes que colocava no cabeçalho das laudas em que datilografava suas matérias: "Redator: Lobianco Filho".
A palavra "filho" era um nome, não mais uma condição. Os cabelos começavam a rarear, os olhos ficaram miúdos, tudo ameaçava decadência -e ele continuava filho, filho de mais nada.
O pai, italiano de Nápoles, chegara ao Brasil em 1922. Assistira ao funeral do tenor Enrico Caruso e, de repente, por uma espécie de faro, percebeu que era tempo de emigrar.
Tomou um cargueiro com destino a Buenos Aires. Como tantos outros -gregos, italianos, espanhóis e turcos-, não resistiu quando o navio atracou na praça Mauá: o Rio era bonito, valia a pena tentar.
Buenos Aires oferecia melhores condições de trabalho, mas era uma cidade europeizada, fria, cinzenta. O Rio era o sol derramado, o mar recortado em praias, as cores fortes do trópico. Ficou. Dois anos depois casou-se com uma mineira. E em 1930 nascera Antônio Lobianco Filho.
O pai exercia profissão humilde; de simples jornaleiro, passara a dono de banca de jornais, na esquina da rua do Ouvidor com a avenida Rio Branco -uma das melhores da cidade.
Daí partiu para outra banca, e mais outra, tornou-se capataz, recebia jornais e revistas para distribuir entre as bancas, as próprias e as associadas.
Bem montado no dinheiro, o pai arranjou uma amante, montou-lhe casa e mordomia. Num Carnaval dos anos 50, Antonio tinha ido passar uns dias em São Lourenço com a família, a legítima.
Ao voltar, correu para a amante, instalada numa casa de vila em Botafogo. Ali encontrou vestígios do Carnaval na forma de confetes espalhados pelo chão. Havia a fantasia de odalisca (cetim prateado, véus diáfanos) jogada na porta do quarto. E, dentro dele, a amante, Estela, abraçada a um mulato de sunga e laço vermelho na testa, restos de uma fantasia que ele não conseguiu identificar.
Antonio era forte. O mulato custou a compreender o que se passava. Levou os primeiros socos sem reagir. Quando recebeu um pontapé no rosto (os dois já rolavam no chão), surgiu à frente de Antonio com a navalha aberta. Foi um talho só, na garganta, tão forte que a cabeça ficou quase dependurada.
Os jornaleiros eram unidos, uma comissão percorreu as Redações, pedindo que o noticiário omitisse a cena de sangue. Lobianco já era doutor. Doutor Antonio Lobianco Filho. Não tinha jeito para advogar, sentia inibição na tribuna, talvez desse para juiz, mas teria de cumprir etapas, fazer cursos e concursos complicados -e o dinheiro agora era curto, a doença da mãe acabara com os bens que o pai deixara.
Com as relações do velho, foi relativamente fácil arranjar um lugar na reportagem do "Diário da Manhã". O dono da empresa era grato ao capataz que melhor vendia os jornais do grupo, colocando-os em destaque nas bancas, as páginas abertas, vendendo as matérias mais quentes.
Mesmo assim, o emprego lhe parecia um favor. Se não fosse Lobianco Filho, filho de Lobianco, talvez nem chegasse a repórter. Mas agarrou a oportunidade, levava jeito para a profissão.
Fez boas reportagens, melhorou o texto, traduzia bem o inglês, uma noite foi jogado no setor internacional, descobriram nele um bom comentarista, pouco depois assinava sua primeira matéria, uma crônica sobre o assassinato do presidente Kennedy, em duas colunas, no alto da página.
Escreveu no cabeçalho da primeira lauda: "Redator: Antonio Lobianco". O secretário de Redação não gostou. Ninguém conhecia aquele sujeito. Riscou o "Antonio" e botou o nome pelo qual seria conhecido: "Lobianco Filho".


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