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CARLOS HEITOR CONY
A história banal daquele homem
Os cabelos começavam a rarear, os olhos ficaram miúdos, tudo ameaçava decadência
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ANTONIO Lobianco Filho sentia-se cansado. Botava no papel uns números complicados, que aparentemente nada significavam. Repetia a seqüência 3712
-números chaves da cabala. Depois
colocava uma cifra -o seu salário
atual. Embaixo, outra quantia (seus
compromissos mensais) e com algarismos maiores escrevia o saldo:
pouco mais de um salário mínimo.
Estudara tanto, formara-se em direito, fizera cursos especializados, e
ali estava, reduzido à realidade mesquinha que nem doía mais.
Na semana seguinte, teria um encontro terrível com o calendário: 21
de março. Faria 50 anos. Sofria todas as vezes que colocava no cabeçalho das laudas em que datilografava
suas matérias: "Redator: Lobianco
Filho".
A palavra "filho" era um nome,
não mais uma condição. Os cabelos
começavam a rarear, os olhos ficaram miúdos, tudo ameaçava decadência -e ele continuava filho, filho
de mais nada.
O pai, italiano de Nápoles, chegara
ao Brasil em 1922. Assistira ao funeral do tenor Enrico Caruso e, de repente, por uma espécie de faro, percebeu que era tempo de emigrar.
Tomou um cargueiro com destino
a Buenos Aires. Como tantos outros
-gregos, italianos, espanhóis e turcos-, não resistiu quando o navio
atracou na praça Mauá: o Rio era bonito, valia a pena tentar.
Buenos Aires oferecia melhores
condições de trabalho, mas era uma
cidade europeizada, fria, cinzenta. O
Rio era o sol derramado, o mar recortado em praias, as cores fortes do
trópico. Ficou. Dois anos depois casou-se com uma mineira. E em 1930
nascera Antônio Lobianco Filho.
O pai exercia profissão humilde;
de simples jornaleiro, passara a dono de banca de jornais, na esquina
da rua do Ouvidor com a avenida
Rio Branco -uma das melhores da
cidade.
Daí partiu para outra banca, e
mais outra, tornou-se capataz, recebia jornais e revistas para distribuir
entre as bancas, as próprias e as associadas.
Bem montado no dinheiro, o pai
arranjou uma amante, montou-lhe
casa e mordomia. Num Carnaval
dos anos 50, Antonio tinha ido passar uns dias em São Lourenço com a
família, a legítima.
Ao voltar, correu para a amante,
instalada numa casa de vila em Botafogo. Ali encontrou vestígios do
Carnaval na forma de confetes espalhados pelo chão. Havia a fantasia de
odalisca (cetim prateado, véus diáfanos) jogada na porta do quarto. E,
dentro dele, a amante, Estela, abraçada a um mulato de sunga e laço
vermelho na testa, restos de uma
fantasia que ele não conseguiu identificar.
Antonio era forte. O mulato custou a compreender o que se passava.
Levou os primeiros socos sem reagir. Quando recebeu um pontapé no
rosto (os dois já rolavam no chão),
surgiu à frente de Antonio com a navalha aberta. Foi um talho só, na garganta, tão forte que a cabeça ficou quase dependurada.
Os jornaleiros eram unidos, uma
comissão percorreu as Redações,
pedindo que o noticiário omitisse a
cena de sangue. Lobianco já era doutor. Doutor Antonio Lobianco Filho.
Não tinha jeito para advogar, sentia
inibição na tribuna, talvez desse para juiz, mas teria de cumprir etapas,
fazer cursos e concursos complicados -e o dinheiro agora era curto, a
doença da mãe acabara com os bens
que o pai deixara.
Com as relações do velho, foi relativamente fácil arranjar um lugar na
reportagem do "Diário da Manhã".
O dono da empresa era grato ao capataz que melhor vendia os jornais
do grupo, colocando-os em destaque nas bancas, as páginas abertas,
vendendo as matérias mais quentes.
Mesmo assim, o emprego lhe parecia um favor. Se não fosse Lobianco Filho, filho de Lobianco, talvez
nem chegasse a repórter. Mas agarrou a oportunidade, levava jeito para
a profissão.
Fez boas reportagens, melhorou o
texto, traduzia bem o inglês, uma
noite foi jogado no setor internacional, descobriram nele um bom comentarista, pouco depois assinava
sua primeira matéria, uma crônica
sobre o assassinato do presidente
Kennedy, em duas colunas, no alto
da página.
Escreveu no cabeçalho da primeira lauda: "Redator: Antonio Lobianco". O secretário de Redação não
gostou. Ninguém conhecia aquele
sujeito. Riscou o "Antonio" e botou o
nome pelo qual seria conhecido:
"Lobianco Filho".
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