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NELSON ASCHER
A luta virtual continua
Quando, em meados do
ano passado, discuti a blogosfera, esta parecia um fenômeno intermitente que se ampliava em momentos de crise para minguar tão logo voltasse a calmaria.
Se a constatação continua se aplicando a bloggers individuais, seu
conjunto, no entanto, não cessou
de crescer. Fala-se agora em algo
ao redor de 4 milhões de weblogs
no mundo inteiro, e existe um site
("The Truth Laid Bear") que fornece diariamente o "ranking" de
mais de 8.000 blogs anglófonos.
Infiltrando-se constantemente
pelas frestas da grande imprensa
e da mídia eletrônica, a blogosfera tem não apenas se consolidado
como também exercido, em particular nos Estados Unidos, uma
influência decisiva no clima de
opinião.
Por exemplo, ainda há pouco os
leitores norte-americanos não faziam idéia da hostilidade com
que não tal ou qual presidente e
administração, mas seu país inteiro e seu modo de vida eram demonizados pelos periódicos do
continente europeu. Simplesmente fazer circular na web as caricaturas do "Libération" ou "Der
Spiegel" bastou para informá-los
de que era um equívoco tratar a
Velha Europa como aliada. O
mesmo vale para a cobertura unilateral dos conflitos do Oriente
Médio, porque a constante denúncia internáutica da parcialidade da Europa contribuiu para
revelar até que ponto suas publicações são responsáveis pelo anti-semitismo ressurgente.
O que está acontecendo nesses
casos é aquilo que hegelianos e
marxistas caracterizam como a
transformação da quantidade em
qualidade. Alguns milhares, ou
mesmo dezenas de milhares, de
computadores pessoais interconectados não querem dizer muita
coisa. Uma vez que se passe à casa
das dezenas ou centenas de milhões, que sua velocidade aumente e os custos sejam reduzidos, tudo muda de figura. Os links a outros blogs e as incontáveis fontes
de informação produzem um
efeito cascata, pois, se no material
impresso referências assim se reduzem a incômodas notas de rodapé, no ambiente virtual elas se
transmutam em atalhos que conduzem a novos atalhos, permitindo aos navegantes personalizarem seus roteiros de leitura.
Além do mais, enquanto na imprensa tradicional a seção de cartas dos leitores é um minúsculo
apêndice, a blogosfera desempenha um papel semelhante, só que
com as dimensões de um dilúvio
cujas águas interativas terminarão arrastando quem ignore a
metamorfose democratizante, inclusive a do espaço reservado às
opiniões. Não é à toa, portanto,
que, quer à esquerda, quer à direita, sobram pessoas reclamando
de que a internet é excessivamente anárquica e desregulamentada.
Como já ocorrera antes com a
televisão, existe aqui um acordo
perfeito entre aiatolás iranianos,
déspotas chineses, burocratas da
União Européia e os contribuidores do "Le Monde Diplomatique".
Segundo estes últimos, o pecado
consiste em deixar ao sabor das
forças do mercado o que poderia,
ou melhor, deveria ser controlado
por governos, de preferência
aqueles majoritariamente representados na ONU, a saber, o dos
aiatolás iranianos, déspotas chineses, burocratas da Comunidade Européia etc.
Infelizmente para eles, a história e a tecnologia os ultrapassaram. O "New York Times" ou o
"Washington Post" podem ter
comprado a versão oficial das recentes eleições iranianas, mas foram os bloggers locais que supriram uma imagem realista da farsa organizada pelos regimes teocráticos. A intifada difusa e (ainda) de baixa intensidade promovida nas "banlieues" (periferias)
das metrópoles francesas ou belgas pelos imigrantes desempregados e mal assimilados raramente
alcança as páginas noticiosas nos
países em questão. Assim, quem
lê inglês em seu monitor sabe melhor o que está se desenrolando
por lá do que os cidadãos monoglotamente francófonos de Paris
ou Bruxelas.
A intelectualidade orgânica insatisfeita com a blogosfera a acusa de ser preponderantemente de
direita. Nada mais falso: ela recobre a totalidade do espectro ideológico. Entretanto é verdade que
pontos de vista raros nos meios
tradicionais de comunicação
criaram para si um nicho na web.
Tal situação decorre do fato de
que os integrantes da comunidade midiática mantém posições
habitualmente mais liberais do
que a média da população. Nos
EUA, um país onde republicanos,
democratas e indecisos são, cada
qual, cerca de 1/3 de seus habitantes, há oito ou nove jornalistas democratas para cada republicano,
e o quadro costuma ser idêntico
nas univerdades. Quanto ao Brasil, a proporção entre petistas, tucanos e pefelistas na imprensa seguramente representa mal a sua
distribuição no eleitorado.
Sucede que hoje em dia as pessoas rotuladas de direitistas,
aliás, de gente de extrema direita
(ninguém, afinal, usa os termos
"centro-direitista" ou "conservador" como impropérios), conquistaram o direito ao epíteto não
porque cortem seu cabelo com
máquina zero, linchem negros,
judeus e nordestinos, desfilem pelas avenidas trajando camisas
verdes ou pardas, mas sim devido
a posições tomadas numa esfera
que para os brasileiros é, paradoxalmente, tão remota quanto
passional: a política internacional.
Neste sentido restrito, a blogosfera anglo-americana pende sem
dúvida para a direita por não ver
no mundo ocidental a raiz das
desgraças humanas em geral. Caso se verifique, todavia, o que a
blogosfera pensa a respeito de tópicos como a democracia representativa, as relações de mercado
ou de trabalho, os direitos das
mulheres ou das minorias e, sobretudo, a liberdade de expressão,
não será difícil constatar que,
malgrado minorias fascistas ou
stalinistas, a maioria dos bloggers
segue firmemente ancorada no
centrismo liberal.
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