São Paulo, segunda-feira, 08 de março de 2004

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NELSON ASCHER

A luta virtual continua

Quando, em meados do ano passado, discuti a blogosfera, esta parecia um fenômeno intermitente que se ampliava em momentos de crise para minguar tão logo voltasse a calmaria. Se a constatação continua se aplicando a bloggers individuais, seu conjunto, no entanto, não cessou de crescer. Fala-se agora em algo ao redor de 4 milhões de weblogs no mundo inteiro, e existe um site ("The Truth Laid Bear") que fornece diariamente o "ranking" de mais de 8.000 blogs anglófonos.
Infiltrando-se constantemente pelas frestas da grande imprensa e da mídia eletrônica, a blogosfera tem não apenas se consolidado como também exercido, em particular nos Estados Unidos, uma influência decisiva no clima de opinião.
Por exemplo, ainda há pouco os leitores norte-americanos não faziam idéia da hostilidade com que não tal ou qual presidente e administração, mas seu país inteiro e seu modo de vida eram demonizados pelos periódicos do continente europeu. Simplesmente fazer circular na web as caricaturas do "Libération" ou "Der Spiegel" bastou para informá-los de que era um equívoco tratar a Velha Europa como aliada. O mesmo vale para a cobertura unilateral dos conflitos do Oriente Médio, porque a constante denúncia internáutica da parcialidade da Europa contribuiu para revelar até que ponto suas publicações são responsáveis pelo anti-semitismo ressurgente.
O que está acontecendo nesses casos é aquilo que hegelianos e marxistas caracterizam como a transformação da quantidade em qualidade. Alguns milhares, ou mesmo dezenas de milhares, de computadores pessoais interconectados não querem dizer muita coisa. Uma vez que se passe à casa das dezenas ou centenas de milhões, que sua velocidade aumente e os custos sejam reduzidos, tudo muda de figura. Os links a outros blogs e as incontáveis fontes de informação produzem um efeito cascata, pois, se no material impresso referências assim se reduzem a incômodas notas de rodapé, no ambiente virtual elas se transmutam em atalhos que conduzem a novos atalhos, permitindo aos navegantes personalizarem seus roteiros de leitura.
Além do mais, enquanto na imprensa tradicional a seção de cartas dos leitores é um minúsculo apêndice, a blogosfera desempenha um papel semelhante, só que com as dimensões de um dilúvio cujas águas interativas terminarão arrastando quem ignore a metamorfose democratizante, inclusive a do espaço reservado às opiniões. Não é à toa, portanto, que, quer à esquerda, quer à direita, sobram pessoas reclamando de que a internet é excessivamente anárquica e desregulamentada.
Como já ocorrera antes com a televisão, existe aqui um acordo perfeito entre aiatolás iranianos, déspotas chineses, burocratas da União Européia e os contribuidores do "Le Monde Diplomatique". Segundo estes últimos, o pecado consiste em deixar ao sabor das forças do mercado o que poderia, ou melhor, deveria ser controlado por governos, de preferência aqueles majoritariamente representados na ONU, a saber, o dos aiatolás iranianos, déspotas chineses, burocratas da Comunidade Européia etc.
Infelizmente para eles, a história e a tecnologia os ultrapassaram. O "New York Times" ou o "Washington Post" podem ter comprado a versão oficial das recentes eleições iranianas, mas foram os bloggers locais que supriram uma imagem realista da farsa organizada pelos regimes teocráticos. A intifada difusa e (ainda) de baixa intensidade promovida nas "banlieues" (periferias) das metrópoles francesas ou belgas pelos imigrantes desempregados e mal assimilados raramente alcança as páginas noticiosas nos países em questão. Assim, quem lê inglês em seu monitor sabe melhor o que está se desenrolando por lá do que os cidadãos monoglotamente francófonos de Paris ou Bruxelas.
A intelectualidade orgânica insatisfeita com a blogosfera a acusa de ser preponderantemente de direita. Nada mais falso: ela recobre a totalidade do espectro ideológico. Entretanto é verdade que pontos de vista raros nos meios tradicionais de comunicação criaram para si um nicho na web. Tal situação decorre do fato de que os integrantes da comunidade midiática mantém posições habitualmente mais liberais do que a média da população. Nos EUA, um país onde republicanos, democratas e indecisos são, cada qual, cerca de 1/3 de seus habitantes, há oito ou nove jornalistas democratas para cada republicano, e o quadro costuma ser idêntico nas univerdades. Quanto ao Brasil, a proporção entre petistas, tucanos e pefelistas na imprensa seguramente representa mal a sua distribuição no eleitorado.
Sucede que hoje em dia as pessoas rotuladas de direitistas, aliás, de gente de extrema direita (ninguém, afinal, usa os termos "centro-direitista" ou "conservador" como impropérios), conquistaram o direito ao epíteto não porque cortem seu cabelo com máquina zero, linchem negros, judeus e nordestinos, desfilem pelas avenidas trajando camisas verdes ou pardas, mas sim devido a posições tomadas numa esfera que para os brasileiros é, paradoxalmente, tão remota quanto passional: a política internacional.
Neste sentido restrito, a blogosfera anglo-americana pende sem dúvida para a direita por não ver no mundo ocidental a raiz das desgraças humanas em geral. Caso se verifique, todavia, o que a blogosfera pensa a respeito de tópicos como a democracia representativa, as relações de mercado ou de trabalho, os direitos das mulheres ou das minorias e, sobretudo, a liberdade de expressão, não será difícil constatar que, malgrado minorias fascistas ou stalinistas, a maioria dos bloggers segue firmemente ancorada no centrismo liberal.


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