São Paulo, sábado, 8 de março de 1997.

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`Cadernos de Lanzarote' é mais diário que literatura

RUI NOGUEIRA
Secretário de Redação da Sucursal

de Brasília Para quem está habituado a ler o José Saramago de obras como ``Memorial do Convento'', ``O Ano da Morte de Ricardo Reis'', ``O Evangelho Segundo Jesus Cristo'' e, mais recentemente, ``Ensaio sobre a Cegueira'', o novo livro do escritor português, ``Cadernos de Lanzarote'', pode ser resumido em uma frase: é muito diário e pouca literatura. Ainda bem.
Os críticos mais exasperados enxergaram nos ``Cadernos'' um excessivo narcisismo do autor. Nas 672 páginas dos diários de 93, 94 e 95, há, indiscutivelmente, uma fogueira das vaidades.
Há dias e dias de histórias sobre encontros em seminários, colóquios e simples debates, caneladas às claras, e nos bastidores, entre egos que não se suportam. Abraços, troca de correspondência e diálogos de corredor com admiradores.
Quem acompanha a trajetória literária de José Saramago descobre fácil que isso tudo é o acessório. A essência dos ``Cadernos de Lanzarote'' está na angústia que tomou conta do escritor faz tempo e que foi se bandeando para a sua literatura.
As quase mágico-realistas histórias de ``Memorial do Convento'' e ``Jangada de Pedra'', recheadas de personagens de nomes poeticamente harmoniosos (Blimunda), evoluíram para uma narrativa claustrofóbica que atingiu o ápice -se é que nada ``pior'' está em gestação- no livro mais recente, ``Ensaio sobre a Cegueira''. Neste, os personagens nem sequer têm nomes.
Em ``Cadernos de Lanzarote'' há um José Saramago praticamente refugiado em Lanzarote, a ilha das Canárias onde mora com a amada Pilar e alguns cachorros adotados à rua.
Do canto mais íntimo, o próprio diário, o escritor português trespassa os três anos de anotações com os comentários mais ácidos sobre a situação da humanidade.
Para Saramago, é insuportável o estado atual de genérica intolerância. O egoísmo europeu é intragável.
Amargo, concluiu: ``O homem não tem remédio''. As tragédias ecumêmicas alimentadas pelo racismo, pelo desemprego e pela ignorância fazem o autor concluir que ``o catálogo de horrores deste campo de concentração chamado Mundo é inesgotável''. Em síntese, para ele, ``o homem é um animal feroz'', um ser ``que não aprende nada''.
Do nicho europeu que o pariu, criou e alimentou culturalmente, Saramago cobra o mínimo, ``uma boa insurreição ética''.
Esse mar revolto de agonia é suavizado pelas belíssimas reflexões, às vezes saborosos bate-bocas, sobre Deus e a que parece ser a mais polêmica das suas obras, o ``Evangelho''.
É, pelo menos, a que mais mexe com os sentimentos, e não apenas religiosos, dos leitores. Duas conclusões pela boca de Saramago: Deus é o medo; a existência do homem é a prova da inexistência de Deus.
Aqui e ali umas histórias entre o simpático e o hilário. Exemplos não faltam. As cartas que chegam a Lanzarote com o endereço incluindo as Ilhas Canárias no território português, ou as que chegam de Lisboa, como se a cidade fosse espanhola.
Ou então, a decepção, ao final de uma entrevista a um jornal norte-americano, ao saber que iria integrar um caderno especial sobre literatura hispânica. Quem mandou nascer em Portugal?
Na lista do Prêmio Nobel há já alguns anos, as especulações sobre a premiação são recorrentes ao longo dos ``Cadernos de Lanzarote''.
Geralmente, bem-humoradas especulações que servem, também, para expor a lista dos afetos e desafetos do autor no mundo literário.
Não convidem para a mesma mesa Saramago e Antonio Tabucchi, Vergílio Ferreira (já morreu), Vasco Graça Moura, Autran Dourado, Vargas Llosa, Lobo Antunes, Octavio Paz e Agustina Bessa Luís, entre outros.

Livro: Cadernos de Lanzarote Autor: José Saramago Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 29 (672 páginas)
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