São Paulo, Segunda-feira, 08 de Março de 1999
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Introdução ao universo moral de George Soros

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha Vampiro, raposa, gênio do mal -fala-se muito nele no Brasil. Megaespeculador, por exemplo, é um nome quilométrico, mas que não esgota a complexidade de George Soros.
Numa longa entrevista concedida a Jeff Madrick, no "New York Review of Books", Soros defende algumas de suas teses e, para dizer a verdade, elas o colocam, de um modo geral, à esquerda dos setores dominantes no Brasil.
Crítico das posições de Reagan e Margaret Thatcher, a quem chama de fundamentalistas do mercado, Soros teria dificuldades em encontrar um lugar na constelação de estrelas do jornalismo econômico.
Sua posição é que é impossível trabalhar com a idéia de equilíbrio no mercado das finanças, pois suas dimensões são desconhecidas. Na crítica ao predomínio do mercado, não se limita a uma análise técnica, vista do ângulo do sistema financeiro:
"Preocupa-me a instabilidade. Preocupa-me também a desigualdade", diz ele. "Os mercados são bons para expressarem o interesse individual. Mas a sociedade não é uma simples soma de interesses individuais. Existem interesses coletivos que não encontram expressão nos valores do mercado. Mercados não podem ser tudo e o fim de tudo. Decisões coletivas e mesmo decisões individuais devem conter a questão do certo e do errado. Acho que os mercados são amorais. Mas os valores morais são necessários para evitar seus excessos e injustiças."
Essas declarações de Soros já o colocam num patamar um pouco diferente dos que acreditam que os mercados resolvem tudo. Claro, ele terá adiante que explicar a contradição entre o que faz e o que pensa, entre o desejo de melhorar o mundo e o ataque a certas moedas nacionais. Mesmo para isso tem argumentos que não são estranhos.
Para começar, afirma que orientou sua vida para obter o sucesso no campo financeiro e tentar fazer alguma coisa, a partir de sua condição vitoriosa. Em segundo lugar, e este é o argumento que mais ouvimos no cotidiano, estabelecer uma cisão entre sua performance individual e suas preocupações coletivas. Como indivíduo, trata de ganhar de dinheiro, mas, quando é chamado a opinar sobre questões mais amplas, assume o ponto de vista da coletividade.
Qual o valor ético dessa cisão? Soros argumenta que, ao debater questões coletivas, supera seus interesses individuais ou mesmo se contrapõe a eles. Daí o conjunto de propostas que avança para reformar o sistema financeiro internacional, tendo como ponto de partida um fundo que emprestasse aos países emergentes, no momento em que os mercados se recusassem a investir neles.
Soros confessa que foi influenciado pelo filósofo Karl Popper e que seu ideal é uma sociedade aberta, com os valores democráticos preservados, como nos Estados Unidos.
Mesmo na questão da política de drogas, sua posição é bastante avançada, uma vez que não acredita numa sociedade livre de drogas e teme que a repressão a elas acabe matando muito mais do que seu consumo.
Posição idêntica à dos 500 intelectuais que publicaram uma carta no "New York Times", entre eles, Lula. A diferença de Soros para os intelectuais é que ele se compromete com o tema e na Califórnia foi um dos financiadores da campanha vitoriosa em referendum para legalizar o uso médico da maconha.
Todas essas nuanças transmitem um perfil de George Soros bastante mais delicado do que aparece na propaganda política. Isso não resolve suas contradições. Poderíamos dizer que ele se enganou ao mergulhar no sonho americano do sucesso, que apostou errado ao dedicar sua vida à acumulação financeira.
Seria uma lista interminável de correções, se trabalhássemos com a hipótese de construir uma pessoa ideal. Pessoas de verdade num mundo real são mesmo contraditórias. Sem elas pode-se fazer história em quadrinhos, mas dificilmente a história cotidiana.
Freiras norte-americanas estão jogando na Bolsa. Querem dinheiro para fazer uma campanha de canonização. Isso revela como, no universo capitalista de hoje, aplicar na Bolsa, colocar, tirar, transferir dinheiro são operações que não se questionam.
Não tenho disposição para defender Soros das acusações que lhe imputam. Apenas sinto que a existência de especuladores desalmados adere perfeitamente a um quadro da crise, em que tudo ia bem até que fomos atacados pelos vilões externos. É uma bela maneira de eximir a responsabilidade da elite brasileira.
Aliás, na mesma entrevista, Soros revela que os bancos brasileiros jogaram e perderam muito dinheiro na Rússia.
Como se vê, a visão do especulador externo varia de lugar para lugar.
Soros, com suas idéias para melhorar o mundo, é um interlocutor válido. Soros indivíduo, querendo ganhar dinheiro, só tem um objetivo, que é seu próprio sucesso.
Moralidade e amoralidade convivem no seu universo, sem que um dos pólos destrua o outro. Bela contradição, verdadeira armadilha para os slogans e as certezas absolutas.


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