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Introdução ao universo moral de George Soros
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Vampiro, raposa, gênio do
mal -fala-se muito nele no
Brasil. Megaespeculador, por
exemplo, é um nome quilométrico, mas que não esgota a
complexidade de George Soros.
Numa longa entrevista concedida a Jeff Madrick, no "New
York Review of Books", Soros
defende algumas de suas teses
e, para dizer a verdade, elas o
colocam, de um modo geral, à
esquerda dos setores dominantes no Brasil.
Crítico das posições de Reagan e Margaret Thatcher, a
quem chama de fundamentalistas do mercado, Soros teria
dificuldades em encontrar um
lugar na constelação de estrelas do jornalismo econômico.
Sua posição é que é impossível trabalhar com a idéia de
equilíbrio no mercado das finanças, pois suas dimensões
são desconhecidas. Na crítica
ao predomínio do mercado,
não se limita a uma análise
técnica, vista do ângulo do sistema financeiro:
"Preocupa-me a instabilidade. Preocupa-me também a desigualdade", diz ele. "Os mercados são bons para expressarem o interesse individual. Mas
a sociedade não é uma simples
soma de interesses individuais.
Existem interesses coletivos
que não encontram expressão
nos valores do mercado. Mercados não podem ser tudo e o
fim de tudo. Decisões coletivas
e mesmo decisões individuais
devem conter a questão do certo e do errado. Acho que os
mercados são amorais. Mas os
valores morais são necessários
para evitar seus excessos e injustiças."
Essas declarações de Soros já
o colocam num patamar um
pouco diferente dos que acreditam que os mercados resolvem
tudo. Claro, ele terá adiante
que explicar a contradição entre o que faz e o que pensa, entre o desejo de melhorar o
mundo e o ataque a certas
moedas nacionais. Mesmo para isso tem argumentos que
não são estranhos.
Para começar, afirma que
orientou sua vida para obter o
sucesso no campo financeiro e
tentar fazer alguma coisa, a
partir de sua condição vitoriosa. Em segundo lugar, e este é o
argumento que mais ouvimos
no cotidiano, estabelecer uma
cisão entre sua performance
individual e suas preocupações
coletivas. Como indivíduo, trata de ganhar de dinheiro, mas,
quando é chamado a opinar
sobre questões mais amplas,
assume o ponto de vista da coletividade.
Qual o valor ético dessa cisão? Soros argumenta que, ao
debater questões coletivas, supera seus interesses individuais
ou mesmo se contrapõe a eles.
Daí o conjunto de propostas
que avança para reformar o
sistema financeiro internacional, tendo como ponto de partida um fundo que emprestasse
aos países emergentes, no momento em que os mercados se
recusassem a investir neles.
Soros confessa que foi influenciado pelo filósofo Karl
Popper e que seu ideal é uma
sociedade aberta, com os valores democráticos preservados,
como nos Estados Unidos.
Mesmo na questão da política de drogas, sua posição é bastante avançada, uma vez que
não acredita numa sociedade
livre de drogas e teme que a repressão a elas acabe matando
muito mais do que seu consumo.
Posição idêntica à dos 500 intelectuais que publicaram uma
carta no "New York Times",
entre eles, Lula. A diferença de
Soros para os intelectuais é que
ele se compromete com o tema
e na Califórnia foi um dos financiadores da campanha vitoriosa em referendum para legalizar o uso médico da maconha.
Todas essas nuanças transmitem um perfil de George Soros bastante mais delicado do
que aparece na propaganda
política. Isso não resolve suas
contradições. Poderíamos dizer que ele se enganou ao mergulhar no sonho americano do
sucesso, que apostou errado ao
dedicar sua vida à acumulação
financeira.
Seria uma lista interminável
de correções, se trabalhássemos
com a hipótese de construir
uma pessoa ideal. Pessoas de
verdade num mundo real são
mesmo contraditórias. Sem
elas pode-se fazer história em
quadrinhos, mas dificilmente a
história cotidiana.
Freiras norte-americanas estão jogando na Bolsa. Querem
dinheiro para fazer uma campanha de canonização. Isso revela como, no universo capitalista de hoje, aplicar na Bolsa,
colocar, tirar, transferir dinheiro são operações que não
se questionam.
Não tenho disposição para
defender Soros das acusações
que lhe imputam. Apenas sinto
que a existência de especuladores desalmados adere perfeitamente a um quadro da crise,
em que tudo ia bem até que fomos atacados pelos vilões externos. É uma bela maneira de
eximir a responsabilidade da
elite brasileira.
Aliás, na mesma entrevista,
Soros revela que os bancos brasileiros jogaram e perderam
muito dinheiro na Rússia.
Como se vê, a visão do especulador externo varia de lugar
para lugar.
Soros, com suas idéias para
melhorar o mundo, é um interlocutor válido. Soros indivíduo, querendo ganhar dinheiro, só tem um objetivo, que é
seu próprio sucesso.
Moralidade e amoralidade
convivem no seu universo, sem
que um dos pólos destrua o outro. Bela contradição, verdadeira armadilha para os slogans e as certezas absolutas.
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