|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
HOSMANY RAMOS
"Depois que sair meu livro na França, vou pedir um "perdão de pena" a FHC", diz o escritor
"Literatura é a arma mais forte que há"
do enviado a Taubaté (SP)
Em frente à lousa, ele explica:
"Existem três características básicas para se transformar em um
escritor. Eu as chamo de três "is'".
O cenário da "aula" é a sala do
diretor da Casa de Custódia de
Taubaté. O quadro-negro traz
uma mensagem fixa sobre os "deveres sagrados com aqueles que
nos cercam, a família". O "professor" é o detento Hosmany Ramos, 54, que elenca intuição, imaginação e inteligência como as
principais qualidades do escriba.
Uma pitada de sorte seria um
bom quarto item. Os 15 contos de
"Marginália", marcados por uma
linguagem arisca como os olhos
de Hosmany, foram escritos no
presídio de Taubaté nos anos 80.
Os manuscritos ficaram encostados até que a jornalista Marisa Raja Gabaglia pediu para enviá-los
para um amigo editor. "Era um
sujeito importante. Nem posso
dizer quem era", diz Hosmany .
O envelope voltou, sem nenhuma espécie de comentário. O ex-cirurgião plástico ficou "chocado" com a falta de respeito e jogou
os manuscritos fora. "Por sorte, a
limpeza da prisão só era feita uma
vez por semana", conta o detento,
que conseguiu, três dias depois,
reaver o envelope com os escritos.
Uma semana mais tarde, uma
visita trouxe-lhe dois livros da hoje extinta editora Clube do Livro.
Dentro de um deles, estava o regulamento de um concurso literário. Hosmany mandou seu texto,
em envelope sem nome, apenas
com o número presidiário.
Nelson dos Reis, que hoje é um
dos diretores da Nova Alexandria,
era editor no Clube do Livro e votou em "Marginália".
"Tinha um veneno naqueles
manuscritos", disse à Folha, sobre contos como o estrelado por
um playboy que tem como principal lazer matar favelados, à bordo
de uma moto Kawasaki.
O sangue que empapa a literatura crua de Hosmany não tinge o
seu discurso. Em conversa de cerca de uma hora, Hosmany só fez
uma restrição: "Não vou falar sobre esses negócios de crime".
Leia trechos da entrevista dada
pelo ex-assistente de Ivo Pitanguy, além de um texto feito com
exclusividade para a Folha.
(CASSIANO ELEK MACHADO)
Folha - Como foi o primeiro
contato com a literatura?
Hosmany Ramos - Salvou a minha vida. Talvez, se não fosse a literatura, eu tivesse até me matado. A única maneira de extravasar
era com letras. A literatura é a arma mais forte que há. Combater o
ócio e o tédio da prisão, para um
intelectual, é complicado.
Folha - Como foram recebidos
os seus primeiros livros?
Ramos - Meu primeiro título
publicado foi "Síndrome da Violência", que era baseado em passagens da minha vida prisional. O
livro foi muito bem aceito na época. No ano seguinte, escrevi
"Queima de Arquivo", que era
meio autobiográfico. Depois dei
um "break". Achei que não era
por aí. Comecei a pensar na frase
de Tolstói que diz que você tem de
escrever sobre a sua aldeia, sobre
seu quintal. Achei que tinha de escrever sobre o meu arredor.
Folha - Sua literatura sempre
envolve questões de violência,
do universo prisional, questões
policiais. Chegou a escrever algo que pulasse essas grades?
Ramos - Não. O universo policial é muito pouco explorado,
principalmente no Brasil. E, para
escrever sobre ele, é preciso ter a
formação. O indivíduo tem de conhecer o ambiente, tudo que só as
pessoas que estão aqui no dia-a-dia podem compreender. É preciso conhecer a claustrofobia a que
se é submetido por todos os lados.
Folha - Qual é sua expectativa
sobre "Marginália" na França?
Ramos - Você sabe que a França
é, intelectualmente, o tambor do
mundo. Saindo lá, vai ser automaticamente publicado em outros países, com certeza. O editor
disse que o livro está excelente.
Folha - O sr. conhece os outros
escritores brasileiros que já foram editados pela Gallimard?
Ramos - Não.
Folha - Machado de Assis, Guimarães Rosa, Drummond, Graciliano Ramos...
Ramos - Puxa, que companhia.
Folha - O que o sr. lê aqui?
Ramos - De tudo. Aqui não há
como escolher. O que me chega às
mãos, eu leio. De bula de remédio
a mitologia grega. Basicamente,
hoje gosto mais de ler Dalton Trevisan, de reler João Antônio, pois
são apenas dois os seus livros.
Também tenho lido muito Henry
Miller. E adoro o Louis-Ferdinand Céline (que assim como
Hosmany foi médico e esteve preso) que tenho comigo, "Viagem
ao Fim da Noite".
Folha - E "O Médico e o Monstro", de R. L. Stevenson?
Ramos - Sabe que a história desse livro é parecida com a de "Marginália"? Quando Stevenson terminou esse livro, ele mostrou para a sua mulher, que disse que não
valia nada. Ele chegou a jogar fora, mas depois pegou de volta.
Folha - O sr. considera que sua
figura pública foi transformada
de médico para monstro?
Ramos - Não gosto dessa comparação. Se eu tivesse praticado
crimes como os do "maníaco do
parque" (que está na mesma prisão que Hosmany), aí seria uma
coisa válida. Mas não foi nada disso. Creio que o que chamou atenção foi o fato de eu ser médico.
Folha - Existe alguma previsão
de quando o sr. será libertado?
Ramos - Já cumpri bastante,
não? Foram 20 anos. Se estivesse
em outro país, já estaria livre. Depois que sair meu livro na França,
vou pedir ao presidente um "perdão de pena". Minha carreira vai
tomar impulso. Quando você tem
livros traduzidos, passa a ter muito mais penetração. Qual é a finalidade da Justiça? Recuperar um
indivíduo para a sociedade.
Folha - O sr. tem escrito o quê?
Ramos - Escrevo diariamente.
Estou fazendo um livro ambientado nos EUA. Meu filho pesquisou na Internet tudo o que tinha
sobre isso para mim. A história é
simples. É sobre um jovem que teve todas as facilidades de penetrar
no mundo da informática. Ele
passa a cometer pequenos crimes,
coisas de hacker, e é preso. Mas
ele se vicia naquilo. Então ele vai
procurar um trabalho e consegue
trabalhar em um setor próximo
da CIA. O livro se passa nos tempos da Guerra do Golfo. O rapaz
se revolta com o poderio americano diante da pequena força dos
árabes e vende informações secretas aos árabes. E é preso.
Folha - O sr. tem algum plano
de voltar para a medicina?
Ramos - Não. Mergulharei na
experiência literária. Estou acostumado. No dia em que não escrevo 500 palavras, me sinto mal.
Folha - Fora da prisão, o sr. teria igual pulsão por escrever?
Ramos - Sim. Há até uma frase
boa do (filósofo alemão) Schopenhauer que diz que, quando a taxa de testosterona diminui, com a
idade, você fica mais livre para
certas coisas. Antigamente ficava
o tempo todo ligado sexualmente.
Hoje não. O pensamento fica até
mais leve para a escrita.
Folha - O sr. sente algum peso
na consciência?
Ramos - Creio que todo ser humano tem suas culpas, e todos temos de expurgar nossas culpas.
A coisa mais difícil que já encontrei foi combater a minha catarse, o que se reflete na minha
vontade de terminar logo um texto. Hoje qualquer manuscrito
meu nunca está finalizado. Se ler
de novo, mexo de novo.
Quando você escreve um livro e
ele não fica bom, você se sente à
vontade para escrever outros.
Mas, quando é considerado bom,
você fica num dilema sério. Dá até
vontade de não escrever mais. Para mim foi até bom que "Marginália" tenha ficado perdido no
tempo e no espaço.
Folha - De onde veio o título?
Ramos - De Helio Oiticica, que
conheci muito. Ele tinha até uma
frase famosa que dizia: "Seja herói, seja bandido".
Folha - O sr. acompanhou o
envolvimento entre o cineasta
João Moreira Salles e o traficante Marcinho VP? Acredita nesse
tipo de reabilitação?
Ramos - Acho interessante. Outros banqueiros poderiam fazer
um concurso para presos. Muitos
escrevem na cadeia e pedem para
eu analisar os seus manuscritos.
Quase nunca o faço, pois, se não
gostar, o camarada vira inimigo.
Folha - Seus livros estão disponíveis na biblioteca da prisão?
Ramos - Já doei, mas sumiram.
Sempre alguém rouba.
Texto Anterior: "Secura" do texto atraiu editor francês Próximo Texto: Trecho Índice
|