São Paulo, sábado, 08 de abril de 2000


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HOSMANY RAMOS

"Depois que sair meu livro na França, vou pedir um "perdão de pena" a FHC", diz o escritor

"Literatura é a arma mais forte que há"


do enviado a Taubaté (SP)

Em frente à lousa, ele explica: "Existem três características básicas para se transformar em um escritor. Eu as chamo de três "is'".
O cenário da "aula" é a sala do diretor da Casa de Custódia de Taubaté. O quadro-negro traz uma mensagem fixa sobre os "deveres sagrados com aqueles que nos cercam, a família". O "professor" é o detento Hosmany Ramos, 54, que elenca intuição, imaginação e inteligência como as principais qualidades do escriba.
Uma pitada de sorte seria um bom quarto item. Os 15 contos de "Marginália", marcados por uma linguagem arisca como os olhos de Hosmany, foram escritos no presídio de Taubaté nos anos 80. Os manuscritos ficaram encostados até que a jornalista Marisa Raja Gabaglia pediu para enviá-los para um amigo editor. "Era um sujeito importante. Nem posso dizer quem era", diz Hosmany .
O envelope voltou, sem nenhuma espécie de comentário. O ex-cirurgião plástico ficou "chocado" com a falta de respeito e jogou os manuscritos fora. "Por sorte, a limpeza da prisão só era feita uma vez por semana", conta o detento, que conseguiu, três dias depois, reaver o envelope com os escritos.
Uma semana mais tarde, uma visita trouxe-lhe dois livros da hoje extinta editora Clube do Livro. Dentro de um deles, estava o regulamento de um concurso literário. Hosmany mandou seu texto, em envelope sem nome, apenas com o número presidiário.
Nelson dos Reis, que hoje é um dos diretores da Nova Alexandria, era editor no Clube do Livro e votou em "Marginália".
"Tinha um veneno naqueles manuscritos", disse à Folha, sobre contos como o estrelado por um playboy que tem como principal lazer matar favelados, à bordo de uma moto Kawasaki.
O sangue que empapa a literatura crua de Hosmany não tinge o seu discurso. Em conversa de cerca de uma hora, Hosmany só fez uma restrição: "Não vou falar sobre esses negócios de crime".
Leia trechos da entrevista dada pelo ex-assistente de Ivo Pitanguy, além de um texto feito com exclusividade para a Folha.
(CASSIANO ELEK MACHADO)

Folha - Como foi o primeiro contato com a literatura?
Hosmany Ramos -
Salvou a minha vida. Talvez, se não fosse a literatura, eu tivesse até me matado. A única maneira de extravasar era com letras. A literatura é a arma mais forte que há. Combater o ócio e o tédio da prisão, para um intelectual, é complicado.

Folha - Como foram recebidos os seus primeiros livros?
Ramos -
Meu primeiro título publicado foi "Síndrome da Violência", que era baseado em passagens da minha vida prisional. O livro foi muito bem aceito na época. No ano seguinte, escrevi "Queima de Arquivo", que era meio autobiográfico. Depois dei um "break". Achei que não era por aí. Comecei a pensar na frase de Tolstói que diz que você tem de escrever sobre a sua aldeia, sobre seu quintal. Achei que tinha de escrever sobre o meu arredor.

Folha - Sua literatura sempre envolve questões de violência, do universo prisional, questões policiais. Chegou a escrever algo que pulasse essas grades?
Ramos -
Não. O universo policial é muito pouco explorado, principalmente no Brasil. E, para escrever sobre ele, é preciso ter a formação. O indivíduo tem de conhecer o ambiente, tudo que só as pessoas que estão aqui no dia-a-dia podem compreender. É preciso conhecer a claustrofobia a que se é submetido por todos os lados.

Folha - Qual é sua expectativa sobre "Marginália" na França?
Ramos -
Você sabe que a França é, intelectualmente, o tambor do mundo. Saindo lá, vai ser automaticamente publicado em outros países, com certeza. O editor disse que o livro está excelente.

Folha - O sr. conhece os outros escritores brasileiros que já foram editados pela Gallimard?
Ramos -
Não.

Folha - Machado de Assis, Guimarães Rosa, Drummond, Graciliano Ramos...
Ramos -
Puxa, que companhia.

Folha - O que o sr. lê aqui?
Ramos -
De tudo. Aqui não há como escolher. O que me chega às mãos, eu leio. De bula de remédio a mitologia grega. Basicamente, hoje gosto mais de ler Dalton Trevisan, de reler João Antônio, pois são apenas dois os seus livros. Também tenho lido muito Henry Miller. E adoro o Louis-Ferdinand Céline (que assim como Hosmany foi médico e esteve preso) que tenho comigo, "Viagem ao Fim da Noite".

Folha - E "O Médico e o Monstro", de R. L. Stevenson?
Ramos -
Sabe que a história desse livro é parecida com a de "Marginália"? Quando Stevenson terminou esse livro, ele mostrou para a sua mulher, que disse que não valia nada. Ele chegou a jogar fora, mas depois pegou de volta.

Folha - O sr. considera que sua figura pública foi transformada de médico para monstro?
Ramos -
Não gosto dessa comparação. Se eu tivesse praticado crimes como os do "maníaco do parque" (que está na mesma prisão que Hosmany), aí seria uma coisa válida. Mas não foi nada disso. Creio que o que chamou atenção foi o fato de eu ser médico.

Folha - Existe alguma previsão de quando o sr. será libertado?
Ramos -
Já cumpri bastante, não? Foram 20 anos. Se estivesse em outro país, já estaria livre. Depois que sair meu livro na França, vou pedir ao presidente um "perdão de pena". Minha carreira vai tomar impulso. Quando você tem livros traduzidos, passa a ter muito mais penetração. Qual é a finalidade da Justiça? Recuperar um indivíduo para a sociedade.

Folha - O sr. tem escrito o quê?
Ramos -
Escrevo diariamente. Estou fazendo um livro ambientado nos EUA. Meu filho pesquisou na Internet tudo o que tinha sobre isso para mim. A história é simples. É sobre um jovem que teve todas as facilidades de penetrar no mundo da informática. Ele passa a cometer pequenos crimes, coisas de hacker, e é preso. Mas ele se vicia naquilo. Então ele vai procurar um trabalho e consegue trabalhar em um setor próximo da CIA. O livro se passa nos tempos da Guerra do Golfo. O rapaz se revolta com o poderio americano diante da pequena força dos árabes e vende informações secretas aos árabes. E é preso.

Folha - O sr. tem algum plano de voltar para a medicina?
Ramos -
Não. Mergulharei na experiência literária. Estou acostumado. No dia em que não escrevo 500 palavras, me sinto mal.

Folha - Fora da prisão, o sr. teria igual pulsão por escrever?
Ramos -
Sim. Há até uma frase boa do (filósofo alemão) Schopenhauer que diz que, quando a taxa de testosterona diminui, com a idade, você fica mais livre para certas coisas. Antigamente ficava o tempo todo ligado sexualmente. Hoje não. O pensamento fica até mais leve para a escrita.

Folha - O sr. sente algum peso na consciência?
Ramos -
Creio que todo ser humano tem suas culpas, e todos temos de expurgar nossas culpas.
A coisa mais difícil que já encontrei foi combater a minha catarse, o que se reflete na minha vontade de terminar logo um texto. Hoje qualquer manuscrito meu nunca está finalizado. Se ler de novo, mexo de novo.
Quando você escreve um livro e ele não fica bom, você se sente à vontade para escrever outros. Mas, quando é considerado bom, você fica num dilema sério. Dá até vontade de não escrever mais. Para mim foi até bom que "Marginália" tenha ficado perdido no tempo e no espaço.

Folha - De onde veio o título?
Ramos -
De Helio Oiticica, que conheci muito. Ele tinha até uma frase famosa que dizia: "Seja herói, seja bandido".

Folha - O sr. acompanhou o envolvimento entre o cineasta João Moreira Salles e o traficante Marcinho VP? Acredita nesse tipo de reabilitação?
Ramos -
Acho interessante. Outros banqueiros poderiam fazer um concurso para presos. Muitos escrevem na cadeia e pedem para eu analisar os seus manuscritos. Quase nunca o faço, pois, se não gostar, o camarada vira inimigo.

Folha - Seus livros estão disponíveis na biblioteca da prisão?
Ramos -
Já doei, mas sumiram. Sempre alguém rouba.


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