São Paulo, sábado, 08 de abril de 2000


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TRECHO

"Ele dormiu um sono agitado. Pesadelos diversos povoaram seus sonhos. Mas ele já estava acostumado com aquilo. Tinha pesadelos todos os dias. Depois do café da manhã, as celas começaram a ser abertas. Eles se reuniram todos num dos cantos do pátio-de-sol. Alguém falou:
- Que tal um aquecimento?
Depois subiram todos de volta aos corredores. Alguns presos trabalhavam nas suas celas: uns costuravam bolas, outros escreviam, alguns outros pintavam. Era um trabalho suado. Uma mão-de-obra barata, mas que deve ajudar nas economias da família.
Um deles começou a mixar uma das portas. Não demorou para abrir. Ele sacou da faca e entrou na cela. Falou com tanta raiva, que a dentadura chegou a descolar:
- Sua hora chegou... Você vai morrer!
O preso que preparava a tela para pintar ficou mais branco que o tecido, recuou. Apontando o estilete na direção dele, começou a descarregar sua neurose sobre o pescoço do outro, que nem chegou a gritar ou pedir pelo-amor-de-Deus. Isso chegou a incomodá-lo. Depois, jogou o cara no catre e cobriu com o lençol. Atirou tudo no chão. Pisou sobre as telas e sobre os tubinhos de tinta, que pipocavam e sujavam o seu sapato. Rasgar as telas já pintadas com a faca, foi o mais difícil.
Ele chegou mesmo a cortar a mão. Os outros olhavam para ele com admiração.
- Eu não estou aí para nada, o meu negócio é matar! - gritou para os outros. - O meu negócio é matar! Matar!
A galeria estava silenciosa. O guarda no fundo cortava suas unhas. Fazia que não via nada. Dentro da cabeça dele, o ódio fervilhava. Aquilo lhe dava status. Todos no mundo eram seus inimigos. Ele odiava sua mãe, seu pai, o pessoal da Febem, os políticos, os dentistas, seus semelhantes, os seres humanos."

Trecho do conto "Pena de Morte à Brasileira", do livro "Marginália", de Hosmany Ramos (capa da edição brasileira no alto)


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