São Paulo, sábado, 08 de abril de 2000


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O DIA-A-DIA NA PRISÃO


Punição e castigo

HOSMANY RAMOS
especial para a Folha

Acordo ensopado de suor. Tive uma noite repleta de pesadelos. Sonhei com o juiz esticando o dedo na minha direção, gritando: "Vou te mandar pra Taubaté, pra você parar de ficar falando bobagens. A lei quem faz sou eu. Entendeu?!". E eu respondendo como numa oração: "Amém, amém, amém".
Um dia na cadeia é barra. Andar pra lá e pra cá, pensar, comer, cagar, dormir, escrever, ler e reler. Entre um dia e outro, uma noite de sono atormentada. Quem disse que amanhã será diferente? Amanhã, pra variar, eu vou fazer as mesmas coisas. Vou acordar na mesma hora, escutar a mesma batida de grades, ouvir o barulho das mesmas vozes e comer a mesma gororoba.
Resistir na prisão é sinônimo de máximo sofrimento. Às vezes penso que estou ficando maluco, pego-me falando sozinho, andando como um robô. As palavras batem nas paredes, como um sonar, e voltam para mim, antes que eu possa pronunciar a palavra seguinte. São incríveis os papos da cadeia, na sua maioria escutar "causos" e façanhas. Antes, escutava falar de prisões e ouvia casos escabrosos sobre criminosos, mas estava absolutamente enganado. Aqui, tudo é diferente do que eu imaginava. Os prisioneiros, na sua maioria, são muito educados. Acho que é porque todo mundo pode descolar uma faca, e todos temem levar uma "pregada" de surpresa, como já vi acontecer.
O guarda aparece, bate a chave na minha porta e pergunta se quero sair para o banho de sol.
A figura dele me impressiona. Imagino que o jovem, quando resolve tornar-se um guarda de presídio, está fazendo uma opção, no mínimo, desesperada. É compreensível que as chances de arrumar um bom emprego hoje em dia são mínimas etc etc. Todavia, no caso do guarda, a opção é meio suicida. É como se ele estivesse preferindo morrer. Para ele, cada dia de trabalho pode ser a véspera do funeral. Olho para ele com meu olhar cevado à rancor e digo: "Vou!". Ele responde: "Vai mesmo?", e sua voz tem a doçura de um adeus. Eu sinto que ele está treinando, a cada dia, para a grande partida.
No pátio, a bola está furada. Os presos ficam dando voltas, como na pintura de Van Gogh.
A rápida meia horinha se esvai, e somos recolhidos como bois ao tronco. De volta à cela, faço duas horas de ginástica aeróbica, na tentativa de aplacar a neurose e cansar o corpo. Depois, fico prostrado e ando como um bicho enjaulado, arrastando os pés sobre o piso de cimento esfregado por pés de outros desesperados que padeceram da mesma agonia que eu, por anos a fio.
Escuto um barulho na galeria e lavo o meu prato de plástico. O almoço é servido sempre na mesma hora e consiste de feijão, arroz e carne. O gosto não é satisfatório, mas não dá pra reclamar. Sei que milhares de pessoas lá fora não têm sequer o que comer.
Enquanto mastigo, meu pensamento volta para a realidade prisional. É desanimador. As prisões são verdadeiras escolas do crime. O ambiente penitenciário não tem nenhuma diferença do meio criminal. Não existe diferença entre as zonas de má vida das cidades e o ambiente prisional, a não ser a ausência das mulheres, com o predomínio das drogas.
Depois do almoço, escovo os dentes e ando durante 40 minutos para ajudar a digestão. Enquanto ando, imagino os livros que gostaria de ler. Pela minha cabeça passa uma listagem enorme de livros não lidos; entretanto isso fica apenas no plano dos sonhos, já que a biblioteca do "Piranhão" não funciona adequadamente.
A parte da tarde é a mais asfixiante da prisão. Alguns tomam comprimidos para dormir e não vêm as horas passarem. Monteiro Lobato disse que o preso vive dias de cem horas. Acho que ele tinha toda razão e se referia às tardes.
Hoje, pra variar, o clima da prisão ficou movimentado com a chegada de um novo castigado. A curiosidade de todos é visível. A galeria logo fica inundada de gritos. Todos querem saber o "B.O." que o cara meteu pra vir parar no "Piranhão". Logo fico sabendo que ele veio direto do Depatri por "bronca" de computador. Alguém diz: "O ladrão moderno pode roubar mais com um computador do que com um revólver".







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