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São Paulo, terça-feira, 08 de abril de 2003

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FERNANDO BONASSI

A guerra vista do sofá

Um porto escondido. Um vento desencanado. Um sol de rachar. Avançam os cadilaques blindados pela nova Rota 66, rumo ao desbravamento do oriente selvagem! As câmeras, em caravana, registram passo a passo na areia movediça, enchendo de pedrinhas as botas dos jornalistas. Enquanto isso, aviões faraônicos sobrevoam de sobreaviso as pirâmides místicas. Um barril de desgraças viscosas por mil anos de prosperidade reúne os três últimos impérios falidos.
Economistas informam que essas energias andam muito em baixa na bolsa de Londres. Uma desconfiança das arábias esmagada pelas lagartas dos tanques. Como Elvis e Lennon já morreram noutras batalhas, levam nos seus MP3s o rock envergonhado dessa operação cirúrgica... mas não se iludam os muçulmanos empoeirados: esses médicos camuflados não passam de soldados! Na verdade, jovens assustados, com o coração e um chiclete na boca.
As pistolas eretas por dentro das calças vasculham o campo minado de explosões e refugiados. Sobem colinas. Catalogam mesquitas. Varejam terroristas. Bisbilhotam a caserna alheia com binóculos noturnos. Trocam sinais esquisitos. Falam palavrões, ficam aflitos. Soltam fogos de artifício pra avisar que vêm chegando sem licença das outras nações desunidas. Os videofones encontram-se focados. Os canhões lubrificados apresentam-se excitados. As granadas ardendo nos dedos esfolados. Ensaiam emboscadas de surpresa. Brincam de ataques planejados. As bombas endereçadas com piadas desgraçadas.
Bandeiras são fincadas nos orifícios das outras como um refresco. Ainda assim os caubóis mascarados temem até respirar e cercam-se de cuidados. Colhem amostras do ar. Fazem pesquisas, laçam cabritos magros pro jantar. Têm desejos de hambúrguer e churrasco. Escrevem cartas à civilização com saudade de cama arrumada, da mulher arrumada e da vida prosaica onde os cantis foram substituídos por torneiras e os buracos negros por privadas.
Alguém tinha de fazer esse serviço? E logo eles?! Por essas e outras, suam em bicas por cima dos fuzis protegidos de ferrugem. Procuram vietcongues escondidos em cavernas onde Cristo perdeu os chinelos de couro e a Mendes Júnior construiu estradas pros Brazílis trafegarem. Onde os curdos são asfixiados entre sírios e turcos preocupados. Onde também pode perfeitamente sobrar pros judeus, que têm muito a ver com isso e nem estão aí pra esses novos messias... Aliás, Marines, cuidado! Os minaretes espetados podem estar envenenados! Maomé pode ter sido inoculado nesses negros de Chicago!
Quando anoitece esverdeado, bilhões de olhos humanos são postos pra lá de Bagdá, onde os cruzamentos fazem roleta-russa por medo dos alarmes. Então, conforme anunciado pelo presidente penteado, acontece o espetáculo. Baterias espocando nos quintais. Uma cidade acordada em pânico dos travesseiros de pena corre pras vidraças estilhaçadas nos banheiros. Procuram B52 que os carregue dessa merda. Um fã do Oasis pilota um caça esfomeado. Não há arranha-céus que atrapalhem ou atraiam seus instintos assassinos. Abre a braguilha e despeja sua carga. Cogumelos malformados brotam dos espaços. Há mais luz para as filmagens agora! Parques devastados. Árvores e lideranças decapitadas.
Quem é mesmo o Marlon Brando dessa história? Gritaria. Ruínas perdidas. Civis fragmentados nas calçadas. Barracos desmoronados nas esquinas. Cofres arrombados por patriotas desgovernados. Uma tempestade num deserto de copos d'água...
Essa é que é a verdade? Os monumentos aos homens conhecidos onde as pombas se descarregam, no entanto, continuam em pé desafiando a paisagem tostada. Nunca foi tão difícil saber pra que lado atirar e o fogo amigo é um perigo! Faz os helicópteros despencarem e os cadáveres entrarem pelas casas de família. ATENÇÃO: um dia as mães proibirão o alistamento militar obrigatório. As crianças derramadas nos hospitais serão utilizadas em propaganda de creme hidratante. Elas choram pelos mesmos peitos esmagados nas carteiras dos recrutas apaixonados. Aparentemente os intérpretes não sabem o que falam com medo de se desentenderem ainda mais por essas estranhas línguas entaladas na garganta. Também pode ser que Saddam Hussein se multiplique num milagre de sósias; peixes iguaizinhos para a alimentação das fantasias mais esquisitas.
ATENÇÃO: será necessária apresentação de documento com fotografia no ato de fuzilamento. O fato é que é um vilão pior que o outro. O filme é mal escrito entre um começo sem razão e um final que eu nem imagino como juntar tanta incoerência desses personagens! Mesmo os efeitos especiais já não são mais aquela novidade estapafúrdia das últimas aventuras desse tipo. De mais a mais, há muita gente contra a empolgação dos generais de cabelo curto de um lado e a exaltação dos generais de bigode do outro e os que têm o devido interesse de ser a favor -seja por um desses poços semi-artesianos ou uma fazenda de boi gordo no Texas- nem saem de seus palácios e casas branquinhas pra sentirem as balas lhes tirarem pedaço das orelhas.
É claro que um diplomata bem vestido pode aparecer de uísque e microfone em punho, pedindo trégua e gelo, mas gente desse tipo nem levamos a sério na BBC... E assim assistimos à madrasta de todas as guerras sem graça... Por aqui os pedaços de pizza beliscados são igualmente amargos. Apagamos o abajur e dormimos tranquilos, estirando-nos junto aos magistrados justiçados na televisão.


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