|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Adolescentes, entre um elefante e as cobras de Samwaad
Estreou na semana passada "Elefante", de Gus van
Sant. O filme conta uma história
mais que parecida com os acontecimentos de 20 de abril de 1999,
quando dois estudantes de último
ano do colégio de Columbine, Colorado, saíram atirando, assassinaram um professor e 12 colegas,
feriram dezenas de outros e se
mataram.
Para a decepção dos comentaristas, os dois jovens, Dylan Klebold e Eric Harris, eram quase
"normais". Suas famílias não pareciam sinistras. Eles tinham pais
e irmãos. Eram alunos corretos.
Certo, não se integravam nos grupos em que se divide cada colégio
americano (esportistas, cus-de-ferro, pode-crer etc.); mas os que
não se integram são, em cada colégio, numerosos. Verdade, gostavam de jogar "Doom", um video
game muito violento; mas
"Doom" vendeu acima de 600 mil
cópias. Já havia armas em casa e
era fácil conseguir mais; mas isso
é banal num subúrbio do Colorado. Também, em 1998, os dois tinham tentado roubar um carro;
mas, desde então, eles haviam
completado com sucesso um programa para adolescentes réus primários (terapia, trabalho social
etc.). Depois do massacre, foram
encontradas, nos diários dos dois
jovens, expressões de ódio suicida
e homicida. Mas nada além de
muitas letras de rap ou das músicas de um Kurt Cobain.
Em suma, mil razões, mas nenhuma à altura da enormidade
do que aconteceu. Fora a dor das
famílias das vítimas (e dos assassinos), fora o luto da comunidade
de Columbine, o maior sofrimento produzido pelo evento foi, sem
ironia, a frustração de não conseguirmos explicar.
A extraordinária qualidade do
filme de Gus van Sant é esta: parece óbvio que uma tragédia vai
acontecer, óbvio como um elefante passeando pela rua, mas as explicações do desastre são apenas
jeitos que a gente encontra para
que a razão nos console. As causas verdadeiras se perdem na banalidade cotidiana.
Naquele dia, Dylan e Eric, com
seu fardo de armas, granadas e
munições, levaram provavelmente para a escola um conjunto de
desgostos triviais: a insatisfação
com o vazio e a solidão de suas vidas, a vontade imperiosa de que
algo acontecesse, a tristeza de eles
não serem os heróis de ninguém,
a frustração de não saber o que é
amar.
Parêntese. Desde a ano passado,
vários leitores me escreveram perguntando por que nunca comentei "Tiros em Columbine", o documentário de Michael Moore.
De fato, gostei bastante do filme
de M. Moore: é uma meditação
(engraçada e corretamente não
conclusiva) sobre a posse de armas na sociedade americana. É
central, no filme, a comparação
com o Canadá, onde a quantidade de armas per habitante é bem
maior que nos EUA, embora o
número de crimes seja incomparavelmente menor. Também central é o fato de que o próprio Michael Moore, fiel a suas raízes
proletárias fincadas na América
profunda, é membro de carteirinha da National Rifle Association, a associação americana dos
proprietários de armas.
Os intelectuais progressistas
americanos adotaram "Tiros em
Columbine", mas a um preço: esqueceram a complexidade do filme. Puderam, assim, usá-lo para
confirmar o que já pensavam: as
armas são coisas de camponês e
operário, coisa de pobre (de espírito e de conta no banco). Na espera de que as massas sejam
"educadas", retiremos as armas
de circulação, e as crianças voltarão para a escola seguras. Responde Gus van Sant: o buraco é
mais embaixo. Parêntese fechado.
O que fazer, então, com esse elefante estranhamente familiar,
que passeia por nossos gramados?
Lembra-se daquele jogo de
crianças em que você coloca na
mesa a figurinha de um bicho, e o
colega propõe outro bicho, afirmando que o dele é mais forte e,
numa luta, ganharia do seu? Ao
elefante de Columbine, eu contraporia as cobras de adolescentes
dançando, no espetáculo montado por Ivaldo Bertazzo, "Samwaad, a Rua do Encontro", no
Sesc Belenzinho. Se você mora em
São Paulo ou se vier para cá até o
fim de junho, não perca.
O espetáculo é o resultado do
projeto Dança Comunidade: durante nove meses, 53 jovens de várias ONGs de São Paulo passaram
25 horas por semana estudando e
treinando para redescobrir seus
corpos.
Em "Samwaad" não há discursos nem palavras. Só música, canto rítmico, percussões e dança.
Misteriosamente, as evoluções
dos dançarinos contêm e transmitem uma mensagem arrepiante de alegria de viver e de solidariedade possível.
Se fosse necessária uma demonstração de que o trabalho
corporal pode tocar algum âmago
da subjetividade, ela está dada.
Aventurar-se na graça e na harmonia, transformar postura e
gestualidade para um passeio na
"Rua do Encontro" é uma maneira de recompor a imagem de si
que cada um oferece aos outros, é
um jeito de inventar novas relações. Pois, por exemplo, ninguém
entra na ciranda sem confiar no
próximo.
Olhando para os jovens de
"Samwaad", pensei na caminhada triste de Dylan e Eric, que enfiavam os coturnos na grama carregando suas bolsas de morte, talvez encurvando os ombros, na paródia da postura do cantor de
rap, que se tornou moda entre os
adolescentes americanos e que
evoca a atitude do boxeador
acuado nas cordas.
Seria bom se os Dylans e Erics
da vida encontrassem um Ivaldo
Bertazzo que lhes ensinasse a
dançar.
ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Análise: Tom discreto faz "Big Brother" persistir Próximo Texto: Panorâmica - Literatura: Achados restos de avião de Saint-Exupéry Índice
|