São Paulo, sábado, 08 de abril de 2006

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RODAPÉ

O camaleão e o monstro

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Um dos modos de caracterizar um poeta consiste em identificar sua proximidade em relação à tradição literária. Não vai aí qualquer juízo de valor: os epígonos podem ser autores geniais ou diluidores; as vozes solitárias podem revelar o talento inclassificável ou o escriba sem classe. Marcelo Sandmann e Paulo Scott, cujos livros comento aqui, não pertencem a nenhum desses extremos, mas estão em extremidades opostas quanto à forma de dialogar com seus pares.
"Criptógrafo Amador" é o segundo livro do curitibano Sandmann. Como indica o título, seus poemas trazem "criptografadas" várias referências a outros escritores, revelando um domínio do verso que nada tem de "amador".
Tal descrição sugere um autor cerebral e supõe leitores cultos, capazes de apreciar seu virtuosismo técnico e decifrar suas citações. De fato, há nesse livro camaleônico vários trabalhos escritos "à maneira de" algum poeta pertencente à tradição. Entretanto, a variedade de formas mostra a relação irônica que Sandmann mantém com o cânone literário.
"Pato ao Tucupi (Uma Breve Digressão Herói-Cômica)", por exemplo, é uma longa e hilariante paródia de "Os Lusíadas", com estrofes de oito versos repletas de inversões sintáticas típicas da época de Camões. O tema cantado por seu "sublimado aedo", porém, é a história nada edificante de um sujeito surpreendido pela polícia enquanto consumia cocaína com a amante:
"Memória inda metida em torvelim,/ A nuca dolorida e latejando,/ Aos poucos, de mansim, assim-assim,/ Do transe atroz me fui recuperando./ A tudo explicar, tintim por tintim,/ Em torpe distrito foram-me instando,/ Jurando haver ali crocodilagem,/ Incluso já me vi na carceragem."
E, na série "15 Paesianas (À Paisana)", ele reelabora frases célebres (de Vinicius de Moraes e Nietzsche a expressões publicitárias), transformando-as em "ready mades", num procedimento aprendido com os epigramas de José Paulo Paes.
Os poemas de Sandmann, como ele mesmo define, são "exercício de acasos premeditados". Esse oxímoro denota sua estratégia de escolher ao léu os autores com os quais dialoga, porém usando-os para formular imagens de precisão, dentro de uma poética em que a função crítica é dominante -como se lê em "3 Postais", retratos dolorosamente líricos de moradores de rua, "centauros do cu-do-mundo" reunidos em torno de fogueiras que crepitam como "piras funerárias".
Essa náusea ético-poética aparece em primeiro plano nos dois livros recém-lançados pelo gaúcho Paulo Scott: "Senhor Escuridão" e "A Timidez do Monstro". Ao contrário do que ocorre com Sandmann, não se percebe nele qualquer traço de diálogo com outras literaturas.
Se fosse necessário apontar afinidades, Scott poderia ser descrito como uma contrapartida poética da "Geração 90", pelo tom anárquico e por aquela atração pelo abjeto, pelo sinistro, que encontramos na prosa de Ronaldo Bressane ou Joca Reiners Terron.
Os poemas de Scott estão sempre no limite da inteligibilidade, com imagens que nascem menos das correspondências entre som e sentido que do atrito entre palavras que pertencem ao campo semântico da escatologia e da alucinação: "Caducam caduco/ as partes podres da maçã/ o cadafalso que arrota/ salmoura logo pela manhã/ e entre os nós de alegria/ o muco", escreve num poema de "A Timidez do Monstro".
Scott passa ao largo dos valores dominantes da poesia brasileira (contenção lírica, construtivismo); prefere ser um "procurador de migalhas", transitando com suas mãos trêmulas de insônia entre bares sórdidos e quitinetes com torneiras que gotejam imagens de pesadelo e suicídio.


Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço

Criptógrafo Amador
    
Autor: Marcelo Sandmann
Editora: Medusa
Quanto: R$ 25 (88 págs.)

Senhor Escuridão
   
Autor: Paulo Scott
Editora: Bertrand Brasil
Quanto: R$ 25 (160 págs.)

A Timidez do Monstro
   
Autor: Paulo Scott
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 29,90 (112 págs.)


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