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FERREIRA GULLAR
Ser negro
A questão não é racial mas cultural e, sob
este ângulo, acredito, deve ser repensada
SER negro no Brasil não é fácil.
Talvez não seja tão difícil
quanto foi antes, mas não é fácil. E não o é porque o negro teve
aqui uma história iníqua, que o marcou e nos marca a todos, fez da cor de
sua pele um sinal de desigualdade.
Independentemente da vontade de
quem quer que seja, a pele de cor negra indica uma origem socialmente
"inferior", ainda que saibamos e
acreditemos que todas as pessoas
são iguais.
A questão não está na minha consciência nem na tua, não está em nossa firme convicção de que raça é um
conceito ultrapassado e que, conseqüentemente, diferenças étnicas
não implicam diferenças essenciais
nem são muito menos indicação de
superioridade ou inferioridade.
A ciência hoje ensina que a humanidade é constituída de indivíduos
que, resultantes de imprevisíveis
combinações de uns mesmos elementos genéticos, guardam sua inconfundível individualidade: alguns
são mais saudáveis, outros menos;
alguns são mais criativos que outros,
mais hábeis que outros, mais tímidos, mais extrovertidos ou mais violentos ou mais desabusados, enfim,
uma variedade de tipos que seria impossível enumerá-los todos. E isso
não depende da etnia e muito menos da cor da pele.
Por isso, em que pese a tantos traços individuais próprios, somos todos uma única espécie -a espécie
humana, definida, mais que tudo,
por sua capacidade de inventar-se e
inventar o mundo em que vive. O
homem, filho da natureza como todos os demais seres, define e enriquece sua humanidade na medida
mesmo em que supera impulsos
egoístas e se reconhece no outro, irmão do outro, solidário e justo. O racismo é fruto do atraso e da pobreza
espiritual, mantém-se na contramão da evolução cultural do homem
em direção à fraternidade e à solidariedade.
Certamente é mais fácil para
quem não sofre o estigma da descriminação afirmar a igualdade de
brancos e negros, de brancos e mulatos. Não lhe pesa fazê-lo, uma vez
que, dada a descriminação latente
na sociedade, essa afirmação, partindo de um branco, pode até parecer um gesto generoso -quando é
apenas uma constatação óbvia e,
muita vez, a expiação de uma culpa
herdada.
Tudo isso ficou mais claro após ter
eu percebido que a pessoa de cor negra traz, estampada na pele, uma
história que a identifica com a escravidão, com a submissão, com a inferioridade da condição social, imposta pelas circunstâncias históricas.
Deve-se entender que vivemos num
mundo de valores inventados, nos
quais acreditamos, sejam falsos ou
verdadeiros.
Na sociedade escravista, o negro
era tido e tratado como "bem de fôlego", igual às alimárias. Embora o
senhor de escravos não lhes pudesse
negar a condição de ser humano,
tratava-os como um animal de sua
propriedade, sobre o qual tinha poder quase absoluto. Em tal situação,
era-lhe conveniente considerá-lo
como um ser inferior. Mas muitos,
como os abolicionistas, indignavam-se com essa condição inumana
imposta ao negro escravo e com o
falso e conveniente conceito de sua
suposta inferioridade. Entre os negros também havia os que chegavam
a aceitar como verdadeira a própria
inferioridade, mas havia também os
que se rebelavam e fugiam para os
quilombos, redutos de resistência,
onde viviam como homens livres e
insubmissos.
Bem, é toda uma história sabida e
que, se a relembro agora, é com o
propósito de, juntos, a repensarmos,
para ver mais claro a questão do negro e para que se superem os mal-entendidos que ainda dificultam a
sua compreensão. Estou certo de
que não existe conflito racial no Brasil, em que pese os restos de preconceitos que irrompem aqui e ali; mas,
quando irrompem, são imediatamente denunciados, repelidos e punidos, porque é um consenso consignado em lei que, neste país, preconceito racial é crime.
Não obstante, não basta a lei Afonso Arinos para impedir que a questão racial se mantenha presente.
Não basta o fato de que a maioria da
população brasileira, em grande
parte mestiça, não alimente preconceito racial, para que o negro e o mulato se sintam de fato à vontade na
sociedade. Se a pessoa tem a pele negra ou parda é porque descende de
escravos, não de senhores; carrega
um passado de humilhações. O preconceito está em se admitir que a
origem social determina o valor do
indivíduo, o que é falso. Isso não justifica alimentar ódios e ressentimentos contra os brancos de hoje,
aos quais também repugna nosso
passado escravista. A questão não é
racial mas cultural e, sob este ângulo, creio, deve ser repensada.
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