São Paulo, sábado, 08 de maio de 2010

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Crítica/"Em Casa"

Saga resgata personagens desajustados

MARCELO PEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em "Gilead", romance ganhador do Prêmio Pulitzer, Marilynne Robinson dá voz ao reverendo John Ames, que, sentindo a aproximação da morte, escreve uma longa carta em formato de diário ao filho pequeno, que não verá crescer.
Em meio a esse relato acompanhamos a chegada do afilhado Jack, espécie de filho pródigo de Robert Boughton, melhor amigo de John. Jack cometeu uma série de pequenos delitos em Gilead, cidadezinha rural de Iowa, e engravidou uma moça, cujo bebê posteriormente morre. Jack foge, só voltando a Gilead agora, cerca de 20 anos depois.
John experimenta um ligeiro ciúme da ligação que se estabelece entre sua jovem esposa e Jack. E tem sérias dúvidas sobre o conforto que o afilhado pode trazer a Robert. Não traz nenhum conforto, propriamente, e sim ansiedade, insegurança, tensão, necessidade de enfrentar as próprias limitações.
E esse choque é mais bem acompanhado neste novo romance, "Em Casa", que apresenta mais ou menos os mesmos personagens, a mesma época (meados dos anos 1950), quase a mesma situação, mas com uma perspectiva já agora diferente.

Mudança de perspectiva
O ponto de vista principal agora é o de Gloria Boughton, filha caçula de Robert. Ela volta para casa a fim de cuidar do pai, que também está morrendo.
Se há um segredo envolvendo as andanças de seu irmão nesses 20 anos, ela se sente igualmente amargurada com os próprios fracassos pessoais, sobretudo no setor afetivo. O que há, assim, para apreciar neste romance, onde tudo parece sabido (sobretudo por quem leu "Gilead")? Embora a trama se torne um pouco mais movimentada a partir da metade do livro, o enredo em si não introduz nada de muito novo.
Até mesmo o segredo de Jack é tratado de forma mais explícita na obra anterior. A resposta está na ideia de perspectiva. Ainda que esse novo ângulo de visão não forneça muitas novidades, ele sem dúvida ilumina outros aspectos dos personagens e amplia o efeito de deslumbramento e perplexidade diante da existência, o qual vinha se desenhando desde "Gilead" (2004).
Ou seja, ao se debruçar sobre os ombros de Gloria, Marilynne -grande estilista da prosa americana atual- tem portanto a oportunidade de definir melhor os traços de seus personagens. E, se no livro anterior havia as cores brilhantes de uma esperança agridoce, vemos agora a concorrência de tons bem mais sombrios, ligeiramente inquietantes, impregnando esta fábula de admirável ressonância sobre um lar ("home") que funciona em larga medida como um exílio para seus personagens desajustados.

MARCELO PEN é professor de teoria literária da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP


EM CASA

Autora: Marilynne Robinson
Tradução: Adriana Lisboa
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 39,90 (352 págs.)
Avaliação: bom




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