São Paulo, sábado, 08 de maio de 2010

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Crítica/teatro/"H.a.m.l.e.t"

Alvim estreia reinvenção de Hamlet

"H.a.m.l.e.t" esmigalha trama original de Shakespeare e escancara a falência múltipla do humanismo em nossos tempos

LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA

Por que encenar textos clássicos? Para celebrá-los como o mármore intocável ou reinventá-los nas urgências do tempo presente? A opção do dramaturgo Roberto Alvim diante do desafio de traduzir "Hamlet" foi radical. Escreveu "H.a.m.l.e.t", uma nova peça em que a trama original é esmigalhada, mas sobrevive o protagonista, agora um doente terminal convivendo com versões turvas e fragmentadas dos demais personagens.
O mérito da operação está na potência poética que o adaptador alcançou com essa independência criativa frente à tragédia de Shakespeare, recontando-a com sua própria voz e a reduzindo a um único ato.
O espetáculo é a leitura dessa adaptação feita pela atriz Juliana Galdino, que também é mulher de Alvim. Ela estreia como encenadora, apresentando a primeira turma do curso de formação do Club Noir, o centro de criação teatral que fundou com Alvim há dois anos.
A direção de Galdino dialoga com os espetáculos recentes da companhia, imprimindo sobre uma já característica cena em penumbra alguns momentos mais solares. Ainda assim, a sintaxe é toda estruturada em staccato, alternando as cenas em que transcorre a ação com algumas escuridões totais para as transições.
Como ponto alto, há uma cenografia concentrada, sintetizando a ação dramática em um espaço vazio e homogêneo, e onde os únicos elementos figurativos são uma cama de hospital e alguns poucos acessórios. É ali, estirado a maior parte do tempo, que esse Hamlet moribundo irá travar um embate feroz com seus fantasmas e inimigos mortais.
Essa opção dos criadores, de destacar o personagem delirando uma fábula convulsa, se aproveita do mote central do texto de Alvim, achado no original, que é a ideia de que "vivemos um sonho alheio" e somos "prisioneiros de histórias que não são nossas", assim enfatizando a própria condição ventríloqua de Shakespeare frente a nós e à contemporaneidade.
O aspecto menos interessante da encenação, curiosamente, é a direção dos atores. Atriz marcada por um domínio excepcional da voz, Galdino impõe uma impostação e lentidão nas interpretações de seu elenco que, muitas vezes, escondem a vivacidade do texto e prejudicam sua compreensão.
Alguns atores conseguem escapar do exagero e se destacam pela suavidade, como é o caso de Bruno Ribeiro, que encarna um Horácio com ares de Hamlet, mixando traços canônicos deste personagem.
Uma iluminação primorosa de Wagner Antônio, ocupando os fundos da cena com variações de cores e de texturas, e alguns figurinos inspirados de Danielle Cabral e da própria Juliana Galdino, como os que caracterizam a trupe aliada do atormentado paciente, também valorizam o espetáculo. Contudo, é mesmo nas falas escondidas, de um lirismo seco e cortante, que reside o seu maior trunfo.
Se o príncipe da Dinamarca criado no período elisabetano evocava ares da Renascença e das revoluções que ela anunciava, nessa versão contemporânea escancara a falência do humanismo e a estreiteza de horizontes do nosso tempo.


H.A.M.L.E.T
Quando: sex. e sáb. às 21h, dom. às 20h; até 23/5
Onde: Club Noir (r. Augusta, 331, tel. 0/xx/11/3255-8448) Quanto: R$ 30
Classificação: 18 anos Avaliação: bom



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