|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
SHOW - CRÍTICA
Desentendido, Caetano Veloso espelha o Brasil
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local
É o último fim-de-semana da
primeira temporada paulistana de
"Livro Vivo", o novo show de
Caetano Veloso. Trata-se de um
espetáculo que diz muito sobre o
Brasil, e poder fazê-lo tem sido
uma característica que acompanha esse artista há já 30 anos.
Duas imagens saltam a olhos e
ouvidos em "Livro Vivo" e ambas talvez signifiquem uma coisa
só. A primeira é a maneira como
Caetano se veste. Repetindo o visual "Fina Estampa" (94), vem
solene, elegante, de terno.
Assim vestido, canta, logo no
começo, "Jorge de Capadócia"
(75), de Jorge Ben. É a interpretação mais impressionante do show,
de um Caetano emocionado, arrebatado -a ponto de evocar, e isso
é muito raro, o modo de cantar de
sua irmã Maria Bethânia.
Tudo vai bem, exceto porque ele
proclama: "Eu estou vestido com
as roupas e as armas de Jorge". Na
oração sincrética de Ben, era um
apelo por proteção; na recente
versão dos Racionais MC's, um
grito de sobrevivência. Não, Caetano, essas que você usa não são as
roupas e as armas de Jorge.
As armas, para o Caetano de hoje, são as que fornecem a segunda
imagem do show: a tentativa obsessiva de soldar as sonoridades
de big bands norte-americanas (o
pretérito perfeito) às dos percussionistas de rua da Bahia (o futuro
do pretérito). Na ausência de nexo
ou consequência entre as duas
pontas, os fundamentos lançados
se acumulam aleatoriamente, sem
qualquer resultado visível.
É isso que se dá quando "Eclipse
Oculto" (83), transfigurada, vira
escola de "sambaxé", ou quando
o ex-funk "Linha do Equador"
(92), de Djavan, se torna "big axé
band", orquestra de branco. A
fórmula vira cárcere -a mesma
que Caetano usava em 68. Pena
que o sinal hoje tenha se invertido,
e que resulte estéril o confronto
que ele ainda quer promover entre
linguagem popular e erudita.
O primitivismo baiano e o cool
jazz são equiparáveis em sofisticação, é a tese -defensável- dele.
O compromisso com a tese, no entanto, descaracteriza sua própria
obra na medida em que o afasta da
realidade dos percussionistas de
chão ou do povo de Racionais.
Quando tal fórmula é afrouxada? Em "Livros", enquanto a
canção se basta no violão (que ele
ameaça atirar à platéia, evocando
Sérgio Ricardo) e na dança sincronizada e poética dos ritmistas. Ou
em "Terra" (78), um dos poucos
momentos em que a solda se justifica com naturalidade.
"Terra" vira um oceano referencial (como sempre, obsessivo
em torno do tema tropicalismo),
que passeia por fanfarras de cidade de interior de toque marcial (o
militarismo à 68), por humores do
sertão (Luiz Gonzaga, o triângulo), pelas citações de arranjo ao Gil
tropicalista (de "Geléia Geral")
ou, mais de raspão, ao "Sinal Fechado" (69) de Paulinho da Viola.
Bem, se de fato houver citação
de raspão a "Sinal Fechado", aí
haverá um sinal importante emitido por Caetano, o da compreensão da incomunicabilidade em
que ele se meteu, imerso que ficou
no eterno retorno de 68.
O Caetano que predomina, no
entanto, é aquele vestido a rigor. A
relação recorrente é de novo inevitável: esse Caetano remete aos
óculos e à grisalha de FHC, senão à
elegância novacap de JK.
Aqui se está representando um
Brasil em que a tropicália deixou
de ser gesto transgressor e se tornou eternidade compulsória. Por
isso a bela prenda caipira "Prenda
Minha" e "Mel" (79), da voz de
Bethânia, insistem na latinização,
na loa de incentivo ao mercado
transnacional da Patagônia.
Se em 68 Caetano era Caetano
Veloso, o transgressor, hoje, cantando "Sampa" (78) e "Manhatã" (97), é o ícone do lado A.
Debate-se entre o furor de expressão de oficialidade e a pura
beleza, que atinge quando nada na
simplicidade -em "Livros", na
trilogia auto-referente "Sem Correr" (63, de Gil), "Carolina" (68,
de Chico Buarque, que ele cantara
em 69) e "Saudosismo" (67, dele
mesmo) ou em "Sozinho".
Mas o Caetano desses momentos virou personagem secundário.
O que sobressai é o de "Tieta"
(96), que quer que a gente cante
"eta"; e aí a gente canta "eta, eta,
eta". Seu público sorri, já conhece
os passos dessa estrada.
Na íntegra, Caetano conserva
sua mais imponente característica: retrata e espelha com precisão
o Brasil em que vive. Se esse Brasil
mergulha hoje na apatia, é assim
que Caetano se apresentará, desentendendo-se do Brasil como o
próprio Brasil se desentende de si.
Dá gana de chorar o show de
Caetano, no que traz de beleza e
no que traz de apatia. A voz inflamada em "Jorge de Capadócia"
fica ribombando na cabeça, feito
bumbo de fanfarra de interior.
Show: Livro Vivo
Artista: Caetano Veloso
Onde: Palace (al. dos Jamaris, 213,
Moema, tel. 011/531-4900)
Quando: hoje e amanhã, às 22h, e
domingo, às 20h
Quanto: R$ 20 a R$ 60
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|