São Paulo, sexta, 8 de maio de 1998

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SHOW - CRÍTICA
Desentendido, Caetano Veloso espelha o Brasil

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local

É o último fim-de-semana da primeira temporada paulistana de "Livro Vivo", o novo show de Caetano Veloso. Trata-se de um espetáculo que diz muito sobre o Brasil, e poder fazê-lo tem sido uma característica que acompanha esse artista há já 30 anos.
Duas imagens saltam a olhos e ouvidos em "Livro Vivo" e ambas talvez signifiquem uma coisa só. A primeira é a maneira como Caetano se veste. Repetindo o visual "Fina Estampa" (94), vem solene, elegante, de terno.
Assim vestido, canta, logo no começo, "Jorge de Capadócia" (75), de Jorge Ben. É a interpretação mais impressionante do show, de um Caetano emocionado, arrebatado -a ponto de evocar, e isso é muito raro, o modo de cantar de sua irmã Maria Bethânia.
Tudo vai bem, exceto porque ele proclama: "Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge". Na oração sincrética de Ben, era um apelo por proteção; na recente versão dos Racionais MC's, um grito de sobrevivência. Não, Caetano, essas que você usa não são as roupas e as armas de Jorge.
As armas, para o Caetano de hoje, são as que fornecem a segunda imagem do show: a tentativa obsessiva de soldar as sonoridades de big bands norte-americanas (o pretérito perfeito) às dos percussionistas de rua da Bahia (o futuro do pretérito). Na ausência de nexo ou consequência entre as duas pontas, os fundamentos lançados se acumulam aleatoriamente, sem qualquer resultado visível.
É isso que se dá quando "Eclipse Oculto" (83), transfigurada, vira escola de "sambaxé", ou quando o ex-funk "Linha do Equador" (92), de Djavan, se torna "big axé band", orquestra de branco. A fórmula vira cárcere -a mesma que Caetano usava em 68. Pena que o sinal hoje tenha se invertido, e que resulte estéril o confronto que ele ainda quer promover entre linguagem popular e erudita.
O primitivismo baiano e o cool jazz são equiparáveis em sofisticação, é a tese -defensável- dele. O compromisso com a tese, no entanto, descaracteriza sua própria obra na medida em que o afasta da realidade dos percussionistas de chão ou do povo de Racionais.
Quando tal fórmula é afrouxada? Em "Livros", enquanto a canção se basta no violão (que ele ameaça atirar à platéia, evocando Sérgio Ricardo) e na dança sincronizada e poética dos ritmistas. Ou em "Terra" (78), um dos poucos momentos em que a solda se justifica com naturalidade.
"Terra" vira um oceano referencial (como sempre, obsessivo em torno do tema tropicalismo), que passeia por fanfarras de cidade de interior de toque marcial (o militarismo à 68), por humores do sertão (Luiz Gonzaga, o triângulo), pelas citações de arranjo ao Gil tropicalista (de "Geléia Geral") ou, mais de raspão, ao "Sinal Fechado" (69) de Paulinho da Viola.
Bem, se de fato houver citação de raspão a "Sinal Fechado", aí haverá um sinal importante emitido por Caetano, o da compreensão da incomunicabilidade em que ele se meteu, imerso que ficou no eterno retorno de 68.
O Caetano que predomina, no entanto, é aquele vestido a rigor. A relação recorrente é de novo inevitável: esse Caetano remete aos óculos e à grisalha de FHC, senão à elegância novacap de JK.
Aqui se está representando um Brasil em que a tropicália deixou de ser gesto transgressor e se tornou eternidade compulsória. Por isso a bela prenda caipira "Prenda Minha" e "Mel" (79), da voz de Bethânia, insistem na latinização, na loa de incentivo ao mercado transnacional da Patagônia.
Se em 68 Caetano era Caetano Veloso, o transgressor, hoje, cantando "Sampa" (78) e "Manhatã" (97), é o ícone do lado A.
Debate-se entre o furor de expressão de oficialidade e a pura beleza, que atinge quando nada na simplicidade -em "Livros", na trilogia auto-referente "Sem Correr" (63, de Gil), "Carolina" (68, de Chico Buarque, que ele cantara em 69) e "Saudosismo" (67, dele mesmo) ou em "Sozinho".
Mas o Caetano desses momentos virou personagem secundário. O que sobressai é o de "Tieta" (96), que quer que a gente cante "eta"; e aí a gente canta "eta, eta, eta". Seu público sorri, já conhece os passos dessa estrada.
Na íntegra, Caetano conserva sua mais imponente característica: retrata e espelha com precisão o Brasil em que vive. Se esse Brasil mergulha hoje na apatia, é assim que Caetano se apresentará, desentendendo-se do Brasil como o próprio Brasil se desentende de si.
Dá gana de chorar o show de Caetano, no que traz de beleza e no que traz de apatia. A voz inflamada em "Jorge de Capadócia" fica ribombando na cabeça, feito bumbo de fanfarra de interior.

Show: Livro Vivo Artista: Caetano Veloso Onde: Palace (al. dos Jamaris, 213, Moema, tel. 011/531-4900) Quando: hoje e amanhã, às 22h, e domingo, às 20h Quanto: R$ 20 a R$ 60


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