|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
VÍDEO
Omar ritualiza poesia em "Pânico Sutil'
CARLOS ADRIANO
especial para a Folha
A partir de "Contaminação",
desfile-coleção do Estúdio M. Officer, Arthur Omar realizou o vídeo "Pânico Sutil", manifesto
poético do rito depurado.
O lançamento da obra ocorreu
na última terça-feira, dia 2.
Sua concepção e materialidade
trazem a assinatura autoral, "o
gesto visceral", a costurar e rasgar
a tessitura das imagens-sons.
O vídeo está num ponto avançado da pesquisa de Omar sobre as
"operações do pensamento"
com a "imagem indireta". É uma
forma de construir com metáforas
deslocadas, que apontam para um
significado oculto.
O mistério é sua ideologia estética. A obra busca gerar conceitos
não-verbalizáveis e sentidos novos, cuja apreensão ainda não se
dá por meio de palavras. Só a própria experiência do trabalho é capaz de fazê-lo.
Experimentar plenamente a coisa, como poderia dizer Merleau-Ponty: ao em vez do "eu entendo", o "eu percebo". O "cogito" da pura experimentação da
essência.
Idéias não-lineares se integram e
interagem na comunicação inconsciente. Indiferenciação em
cadências cambiáveis. Captação
subliminar.
A música está absolutamente
compactada às imagens, pontuando cada sequência de modo preciso e demarcando as sensações em
atmosferas específicas (uma melodia lírica, um violão barroco, uma
harmonia atonal). Várias peças
musicais formam um todo orgânico, ritmo indissoluto.
Como em outros vídeos de
Omar, quase todas as imagens são
ralentadas (as exceções são significativas, como os batuques da percussão).
No início do vídeo, a nebulosa
dourada pulsa em configuração
circular, como a molécula dupla
de DNA. Seu caráter de caos primordial, que gera virtualidades,
define-se na fusão para as faces de
Naná e da modelo (a luz recorta o
rosto dela na sombra, só os olhos
brilham). Segue-se uma série de
fusões de padrões sintéticos de tecidos coloridos e caras da modelo.
Se no cinema a metáfora é feita
por meio do corte, no vídeo ela é
feita por meio da fusão. "Pânico
Sutil" inscreve suas metáforas intransitivas por meio da justaposição e da sobreposição de signos
audiovisuais.
A imagem da navalha se abrindo
é cortada por três breves inserções
de um batuque (a cada entrada,
aumentam as batidas).
O fio da navalha anuncia o corte
da cena e a sobreposição do olho
traz a associação buñueliana (o
ruído ambiente rima com a busca
lateral do olhar).
Um batuque introduz em close o
batom vermelho (sob o totem fálico, piscam cores). O ato de passar
o batom na boca é decupado em
planos descontínuos que mantém
a continuidade.
A composição da cena imanta
sentidos. Um plano com porções
de braços e coxas envoltos no tecido cinza dá a imagem de materiais
contrastantes em atrito. O vermelho da boca morde o cinza crispado do pano.
A inserção da roda do carrinho
carregando a mulher (em positivo
e negativo) chama o chocalho que
se agita em abstrações de luz.
Se o corte instaura a metáfora, as
fusões a verticalizam. O giro da cabeça da modelo (à esquerda do
quadro) completa-se na duplicação da mesma imagem (à direita),
continuando o movimento.
A cena anuncia a faca na barriga.
Se lá o corte mantém a continuidade, aqui ele faz a elipse e a areia
sai do ventre.
Para Omar, o vídeo faz uma
"operação de alquimia dos materiais". A transformação do tecido
é o ponto inicial da linha de idéias.
Seu processo é como o do catador
de pepitas, que deixa a água escorrer para ver o tesouro.
Sem cair no efeito fácil do liquidificador de imagens (praga que
impregna a língua videoclipada),
"Pânico Sutil" modula a centrífugação de signos com rigor.
Omar trabalha a matéria bruta
inteira, depurando-a, refinando
para descobrir a obra que já está
ali dentro. O diretor conta que nos
cinco dias de edição, até as duas
últimas horas, ainda não havia
editado nada. Um método de decantação.
Na maré da edição não-linear
(equipamento digital de montagem de imagens e sons), destila-se
surpresa. O processo, que (a)guarda o mistério, revela o que se produz. Diz Omar que o resultado final vem de repente, "como uma
faísca".
Assim são deflagradas as metáforas arrojadas, que parecem irromper como uma combustão espontânea e controlada. O caos
inaugural sugere um jogo preciso
no tabuleiro aleatório do indiscernível. Tramas de signos com nós
de luz.
Cortes e fusões articulam encadeamento. Após a mulher grávida
parir o grão branco, duas mãos femininas se esfregam, tateando o
ar, sob um pó dourado que cai.
Fusão para o rosto (em "flou")
de uma mulher, turvado por flocos dourados. Sobreposição do
rosto-sombra. Escoa a terra da
barriga.
Rimando com esse movimento,
uma panorâmica vertical sobe pelo vestido prateado e drapeado da
modelo. Durante a "pan", surge
(em "fade-in") o rosto de uma
mulher. No fim (a cabeça da modelo), os dois rostos se fundem. Os
olhos se abrem, o gongo soa e vem
a próxima imagem (o rosto-sombra).
O diretor trabalha cada peça individual do vídeo. É um "método
altamente estressante, à beira do
impossível", pois não é combinatório, mas centrífugo.
Trata-se de tentar distender,
mais que a duração, a dimensão
da imagem. Manter o processo
aberto até o final, buscando aproveitar o máximo de cada elemento. Preservar a ambiguidade e a
potencialidade de cada imagem.
É uma operação exponencial dos
sentidos, que tensiona os signos
(cuja decifração permanece num
ponto da indecibilidade deleuziana). Uma constelação de configurações potenciais.
Coágulo de sugestões, saturação
dos interstícios, a beleza arrebatadora de "Pânico Sutil" borda
uma textura consútil de impactos
extáticos.
Carlos Adriano é pesquisador de cinema; dirigiu, entre outros, o curta-metragem "Remanescências".
Vídeo: Pânico Sutil
Diretor: Arthur Omar
Onde: nas lojas M. Officer
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|