São Paulo, segunda, 8 de junho de 1998

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VÍDEO
Omar ritualiza poesia em "Pânico Sutil'

CARLOS ADRIANO
especial para a Folha

A partir de "Contaminação", desfile-coleção do Estúdio M. Officer, Arthur Omar realizou o vídeo "Pânico Sutil", manifesto poético do rito depurado.
O lançamento da obra ocorreu na última terça-feira, dia 2.
Sua concepção e materialidade trazem a assinatura autoral, "o gesto visceral", a costurar e rasgar a tessitura das imagens-sons.
O vídeo está num ponto avançado da pesquisa de Omar sobre as "operações do pensamento" com a "imagem indireta". É uma forma de construir com metáforas deslocadas, que apontam para um significado oculto.
O mistério é sua ideologia estética. A obra busca gerar conceitos não-verbalizáveis e sentidos novos, cuja apreensão ainda não se dá por meio de palavras. Só a própria experiência do trabalho é capaz de fazê-lo.
Experimentar plenamente a coisa, como poderia dizer Merleau-Ponty: ao em vez do "eu entendo", o "eu percebo". O "cogito" da pura experimentação da essência.
Idéias não-lineares se integram e interagem na comunicação inconsciente. Indiferenciação em cadências cambiáveis. Captação subliminar.
A música está absolutamente compactada às imagens, pontuando cada sequência de modo preciso e demarcando as sensações em atmosferas específicas (uma melodia lírica, um violão barroco, uma harmonia atonal). Várias peças musicais formam um todo orgânico, ritmo indissoluto.
Como em outros vídeos de Omar, quase todas as imagens são ralentadas (as exceções são significativas, como os batuques da percussão).
No início do vídeo, a nebulosa dourada pulsa em configuração circular, como a molécula dupla de DNA. Seu caráter de caos primordial, que gera virtualidades, define-se na fusão para as faces de Naná e da modelo (a luz recorta o rosto dela na sombra, só os olhos brilham). Segue-se uma série de fusões de padrões sintéticos de tecidos coloridos e caras da modelo.
Se no cinema a metáfora é feita por meio do corte, no vídeo ela é feita por meio da fusão. "Pânico Sutil" inscreve suas metáforas intransitivas por meio da justaposição e da sobreposição de signos audiovisuais.
A imagem da navalha se abrindo é cortada por três breves inserções de um batuque (a cada entrada, aumentam as batidas).
O fio da navalha anuncia o corte da cena e a sobreposição do olho traz a associação buñueliana (o ruído ambiente rima com a busca lateral do olhar).
Um batuque introduz em close o batom vermelho (sob o totem fálico, piscam cores). O ato de passar o batom na boca é decupado em planos descontínuos que mantém a continuidade.
A composição da cena imanta sentidos. Um plano com porções de braços e coxas envoltos no tecido cinza dá a imagem de materiais contrastantes em atrito. O vermelho da boca morde o cinza crispado do pano.
A inserção da roda do carrinho carregando a mulher (em positivo e negativo) chama o chocalho que se agita em abstrações de luz.
Se o corte instaura a metáfora, as fusões a verticalizam. O giro da cabeça da modelo (à esquerda do quadro) completa-se na duplicação da mesma imagem (à direita), continuando o movimento.
A cena anuncia a faca na barriga. Se lá o corte mantém a continuidade, aqui ele faz a elipse e a areia sai do ventre.
Para Omar, o vídeo faz uma "operação de alquimia dos materiais". A transformação do tecido é o ponto inicial da linha de idéias. Seu processo é como o do catador de pepitas, que deixa a água escorrer para ver o tesouro.
Sem cair no efeito fácil do liquidificador de imagens (praga que impregna a língua videoclipada), "Pânico Sutil" modula a centrífugação de signos com rigor.
Omar trabalha a matéria bruta inteira, depurando-a, refinando para descobrir a obra que já está ali dentro. O diretor conta que nos cinco dias de edição, até as duas últimas horas, ainda não havia editado nada. Um método de decantação.
Na maré da edição não-linear (equipamento digital de montagem de imagens e sons), destila-se surpresa. O processo, que (a)guarda o mistério, revela o que se produz. Diz Omar que o resultado final vem de repente, "como uma faísca".
Assim são deflagradas as metáforas arrojadas, que parecem irromper como uma combustão espontânea e controlada. O caos inaugural sugere um jogo preciso no tabuleiro aleatório do indiscernível. Tramas de signos com nós de luz.
Cortes e fusões articulam encadeamento. Após a mulher grávida parir o grão branco, duas mãos femininas se esfregam, tateando o ar, sob um pó dourado que cai. Fusão para o rosto (em "flou") de uma mulher, turvado por flocos dourados. Sobreposição do rosto-sombra. Escoa a terra da barriga.
Rimando com esse movimento, uma panorâmica vertical sobe pelo vestido prateado e drapeado da modelo. Durante a "pan", surge (em "fade-in") o rosto de uma mulher. No fim (a cabeça da modelo), os dois rostos se fundem. Os olhos se abrem, o gongo soa e vem a próxima imagem (o rosto-sombra).
O diretor trabalha cada peça individual do vídeo. É um "método altamente estressante, à beira do impossível", pois não é combinatório, mas centrífugo.
Trata-se de tentar distender, mais que a duração, a dimensão da imagem. Manter o processo aberto até o final, buscando aproveitar o máximo de cada elemento. Preservar a ambiguidade e a potencialidade de cada imagem.
É uma operação exponencial dos sentidos, que tensiona os signos (cuja decifração permanece num ponto da indecibilidade deleuziana). Uma constelação de configurações potenciais.
Coágulo de sugestões, saturação dos interstícios, a beleza arrebatadora de "Pânico Sutil" borda uma textura consútil de impactos extáticos.


Carlos Adriano é pesquisador de cinema; dirigiu, entre outros, o curta-metragem "Remanescências".
Vídeo: Pânico Sutil Diretor: Arthur Omar Onde: nas lojas M. Officer


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