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Livros são "leitura possível da vida", afirma Gamboa
Escritor colombiano integra a nova geração da literatura latino-americana
Em "A Síndrome de Ulisses", lançado agora no Brasil, escritor quis retratar a Paris que não aparece nos cartões-postais
DA REPORTAGEM LOCAL
Santiago Gamboa é, ele mesmo, um imigrante. Deixou a
Bogotá natal para cursar a Universidade Complutense de Madri. Depois, foi para a França,
sempre estudando literatura
latino-americana.
Faz parte de uma geração de
novos escritores do continente
que fogem do rótulo "realismo
mágico". Esse grupo de "rebeldes" tem divisões internas. Há
os que se filiam ao movimento
McOndo, do chileno Alberto
Fuguet, os da geração "crack"
(não é "crack" da droga, mas de
ruptura mesmo) mexicana, e,
por fim, os da controversa "geração 90" brasileira. Sobre literatura e exílio, Gamboa falou à
Folha.
(SC)
FOLHA - Você viveu muito tempo
fora da Colômbia. Como esse "exílio"
faz você se sentir?
SANTIAGO GAMBOA - A identidade de cada um fica maior com a
distância. Quando eu vivia na
Colômbia, não sabia que era latino-americano. Isso eu descobri depois, na Espanha, ao perceber que tinha amizade natural com pessoas que vinham do
México, da Argentina, de Cuba
ou do Peru. Eu não conhecia esses países, mas sentia que eram
próximos. Depois, fui viver ainda mais longe, em Paris, e ali
descobri que, do meu lado, estavam também os espanhóis.
Falávamos o mesmo idioma e
éramos estrangeiros. Nos embebedávamos na nossa língua.
Indo ainda mais longe, para a
China, me encontrei com um
dinamarquês em uma estação
de trem. Eu estava há semanas
sem enxergar um ocidental e,
ao vê-lo, me emocionei. Com o
dinamarquês aconteceu o mesmo e nos abraçamos. É por isso
que acredito que a identidade é
um problema de distância.
FOLHA - Então há muito de autobiográfico no protagonista de "A
Síndrome de Ulisses"?
GAMBOA - Usei alguns episódios e experiências da minha
vida, mas, quando se entra no
território do romance, tudo vira fictício. O literário é o reino
daquilo que poderia ter sido, e
esse reino está longe da vida
real. Não quis ser autobiográfico. Quem escreve uma autobiografia deve, ao menos, suspeitar que sua vida interessa aos
demais e posso te assegurar que
esse não é o meu caso.
FOLHA - Você diria que aquilo que
liga todos os personagens do seu livro é um mal-estar comum?
GAMBOA - Bom, aí entra a minha experiência, passei a vida
sendo estrangeiro. Quando
cheguei a Paris no ano de 1990
conheci de perto esses imigrantes, a maioria sem papéis, que
não tinham nada na vida exceto
seus desejos, suas feridas, sua
própria aventura.
Suas vidas eram tristes, mas,
ao examiná-las com atenção,
podia-se notar que nelas havia
muitas coisas, inclusive instantes de grande euforia ou felicidade, ainda que se tratassem de
momentos efêmeros. O álcool e
o sexo podem fazer você feliz
por um instante, mas algumas
horas depois você acorda e algo
te dói ou você se sente mal ou se
arrepende. Isso acontece com
todo mundo, mas, quando o
contexto é a rua de uma cidade
estranha, a pobreza, a fome e o
medo, é claro que as coisas são
um pouco mais trágicas.
Também existe a amizade,
que é o amor sem sexo e que tudo salva, e que costuma ser
muito forte quando a realidade
é difícil. A amizade é o grande
antídoto. Saber que seus sofrimentos importam a alguém é já
um modo de ir vencendo-os.
FOLHA - O livro é uma espécie de
jogo com diferentes pontos-de-vista. Por que esse formato?
GAMBOA - "A Síndrome de
Ulisses" é um livro de vozes.
Quando alguém conhece outra
pessoa de uma cidade distante
a primeira coisa que faz é contar uma história ou escutá-la.
Cada instante do livro é uma
história contada por alguém
enquanto caminha com outra
pessoa, as mãos nos bolsos, no
meio da chuva fina, sem que nenhum deles tenha para onde ir.
FOLHA - O que há em comum entre
a colombiana Paula, que foi a Paris
por sexo, e o coreano Jung, que fugiu de seu país?
GAMBOA - Bom, Jung é alguém
que perdeu tudo e que, além
disso, fez uma sacanagem, que
foi escapar da Coréia do Norte
deixando a mulher para trás.
Para ele a vida se divide entre a
miséria e a culpa. Ele tenta redimir-se, e o sentido de sua vida
é alcançar essa redenção. Paula,
por sua vez, está buscando a vida, que para ela é ainda uma página em branco.
O sexo, para Paula, é uma
aventura vital que acaba sendo
intelectual, pois a leva à poesia.
Através do sexo, ela busca seu
próprio destino, e isso, em seu
caso, é algo que só pode fazer
longe de seu país e da sociedade
em que cresceu. Não está fugindo, como Jung, mas buscando.
FOLHA - Muitos livros e autores são
mencionados no romance, desde o
árabe que curiosamente é viciado
em "Adán Buenosayres" (1948), do
argentino Leopoldo Marechal. São
uma lista de preferências sua?
GAMBOA - Uma das funções da
literatura é dar notícias de outros mundos, sejam estes geográficos, culturais ou especificamente literários. A literatura
é uma leitura possível da vida e
eu gosto dos livros que levam a
outros livros e que, por sua vez,
nos unem em uma corrente
ainda maior, porque qualquer
livro que aspira ser uma obra de
arte está necessariamente em
diálogo com outros.
FOLHA - Paris serviu de abrigo à
parte da vanguarda latino-americana. O seu é um ângulo diferente.
GAMBOA - Exatamente, tento
ver Paris não como a cidade
vanguardista da arte, do pensamento e da beleza, mas como a
cidade impiedosa com os imigrantes, esse lugar frio e úmido,
de subúrbios inóspitos, onde
vão morrer os sonhos de tantos
estrangeiros, onde se chocam
as naves desses modernos Ulisses que são os viajantes clandestinos da pobreza e da miséria de nossos dias.
A SÍNDROME DE ULISSES
Autor: Santiago Gamboa
Lançamento: Planeta
Preço: R$ 39,90 (373 págs.)
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