São Paulo, sábado, 08 de julho de 2006

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Livros são "leitura possível da vida", afirma Gamboa

Escritor colombiano integra a nova geração da literatura latino-americana

Em "A Síndrome de Ulisses", lançado agora no Brasil, escritor quis retratar a Paris que não aparece nos cartões-postais

DA REPORTAGEM LOCAL

Santiago Gamboa é, ele mesmo, um imigrante. Deixou a Bogotá natal para cursar a Universidade Complutense de Madri. Depois, foi para a França, sempre estudando literatura latino-americana. Faz parte de uma geração de novos escritores do continente que fogem do rótulo "realismo mágico". Esse grupo de "rebeldes" tem divisões internas. Há os que se filiam ao movimento McOndo, do chileno Alberto Fuguet, os da geração "crack" (não é "crack" da droga, mas de ruptura mesmo) mexicana, e, por fim, os da controversa "geração 90" brasileira. Sobre literatura e exílio, Gamboa falou à Folha. (SC)  

FOLHA - Você viveu muito tempo fora da Colômbia. Como esse "exílio" faz você se sentir?
SANTIAGO GAMBOA
- A identidade de cada um fica maior com a distância. Quando eu vivia na Colômbia, não sabia que era latino-americano. Isso eu descobri depois, na Espanha, ao perceber que tinha amizade natural com pessoas que vinham do México, da Argentina, de Cuba ou do Peru. Eu não conhecia esses países, mas sentia que eram próximos. Depois, fui viver ainda mais longe, em Paris, e ali descobri que, do meu lado, estavam também os espanhóis. Falávamos o mesmo idioma e éramos estrangeiros. Nos embebedávamos na nossa língua. Indo ainda mais longe, para a China, me encontrei com um dinamarquês em uma estação de trem. Eu estava há semanas sem enxergar um ocidental e, ao vê-lo, me emocionei. Com o dinamarquês aconteceu o mesmo e nos abraçamos. É por isso que acredito que a identidade é um problema de distância.

FOLHA - Então há muito de autobiográfico no protagonista de "A Síndrome de Ulisses"?
GAMBOA
- Usei alguns episódios e experiências da minha vida, mas, quando se entra no território do romance, tudo vira fictício. O literário é o reino daquilo que poderia ter sido, e esse reino está longe da vida real. Não quis ser autobiográfico. Quem escreve uma autobiografia deve, ao menos, suspeitar que sua vida interessa aos demais e posso te assegurar que esse não é o meu caso.

FOLHA - Você diria que aquilo que liga todos os personagens do seu livro é um mal-estar comum?
GAMBOA
- Bom, aí entra a minha experiência, passei a vida sendo estrangeiro. Quando cheguei a Paris no ano de 1990 conheci de perto esses imigrantes, a maioria sem papéis, que não tinham nada na vida exceto seus desejos, suas feridas, sua própria aventura. Suas vidas eram tristes, mas, ao examiná-las com atenção, podia-se notar que nelas havia muitas coisas, inclusive instantes de grande euforia ou felicidade, ainda que se tratassem de momentos efêmeros. O álcool e o sexo podem fazer você feliz por um instante, mas algumas horas depois você acorda e algo te dói ou você se sente mal ou se arrepende. Isso acontece com todo mundo, mas, quando o contexto é a rua de uma cidade estranha, a pobreza, a fome e o medo, é claro que as coisas são um pouco mais trágicas. Também existe a amizade, que é o amor sem sexo e que tudo salva, e que costuma ser muito forte quando a realidade é difícil. A amizade é o grande antídoto. Saber que seus sofrimentos importam a alguém é já um modo de ir vencendo-os.

FOLHA - O livro é uma espécie de jogo com diferentes pontos-de-vista. Por que esse formato?
GAMBOA
- "A Síndrome de Ulisses" é um livro de vozes. Quando alguém conhece outra pessoa de uma cidade distante a primeira coisa que faz é contar uma história ou escutá-la. Cada instante do livro é uma história contada por alguém enquanto caminha com outra pessoa, as mãos nos bolsos, no meio da chuva fina, sem que nenhum deles tenha para onde ir.

FOLHA - O que há em comum entre a colombiana Paula, que foi a Paris por sexo, e o coreano Jung, que fugiu de seu país?
GAMBOA
- Bom, Jung é alguém que perdeu tudo e que, além disso, fez uma sacanagem, que foi escapar da Coréia do Norte deixando a mulher para trás. Para ele a vida se divide entre a miséria e a culpa. Ele tenta redimir-se, e o sentido de sua vida é alcançar essa redenção. Paula, por sua vez, está buscando a vida, que para ela é ainda uma página em branco. O sexo, para Paula, é uma aventura vital que acaba sendo intelectual, pois a leva à poesia. Através do sexo, ela busca seu próprio destino, e isso, em seu caso, é algo que só pode fazer longe de seu país e da sociedade em que cresceu. Não está fugindo, como Jung, mas buscando.

FOLHA - Muitos livros e autores são mencionados no romance, desde o árabe que curiosamente é viciado em "Adán Buenosayres" (1948), do argentino Leopoldo Marechal. São uma lista de preferências sua?
GAMBOA
- Uma das funções da literatura é dar notícias de outros mundos, sejam estes geográficos, culturais ou especificamente literários. A literatura é uma leitura possível da vida e eu gosto dos livros que levam a outros livros e que, por sua vez, nos unem em uma corrente ainda maior, porque qualquer livro que aspira ser uma obra de arte está necessariamente em diálogo com outros.

FOLHA - Paris serviu de abrigo à parte da vanguarda latino-americana. O seu é um ângulo diferente.
GAMBOA
- Exatamente, tento ver Paris não como a cidade vanguardista da arte, do pensamento e da beleza, mas como a cidade impiedosa com os imigrantes, esse lugar frio e úmido, de subúrbios inóspitos, onde vão morrer os sonhos de tantos estrangeiros, onde se chocam as naves desses modernos Ulisses que são os viajantes clandestinos da pobreza e da miséria de nossos dias.


A SÍNDROME DE ULISSES Autor: Santiago Gamboa Lançamento: Planeta Preço: R$ 39,90 (373 págs.)


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