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São Paulo, sexta-feira, 08 de agosto de 2003

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CRÍTICA

Paulinho da Viola é o cantor do futuro

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

O vibrato na voz de Paulinho da Viola: comentar um mistério desses já nos levaria, quem sabe, um pouco mais perto da arte de um de nossos maiores músicos.
Ele usa pouco o vibrato; geralmente num fim de frase ("Não posso definir aquele a-ZUL"), mas também para reforçar certas sílabas ("Senti-MEN-tos, em meu peito eu TE-nho de-MA-ais"). Às vezes, canta um trecho inteiro a seco. E é justamente por isso que o vibrato tanto importa: na vibração delicada da voz, sempre controlada e justa, abre-se uma fresta para outro tempo, resgatado sem sentimentalismo.
Ele mesmo insiste que não sente saudade, ou não precisa sentir saudade, porque tem a música do passado viva por dentro. O quanto dessa mitologia é uma verdade do músico e o quanto uma ilusão do cantor? O filme de Izabel Jaguaribe não põe a pergunta nesses termos, mas nos dá elementos para pensar sobre o assunto.
Tanto a diretora quanto o roteirista, Zuenir Ventura, acabam se entregando no fim -uma sequência de imagens de Paulinho vestido "à antiga", num cenário de Rio antigo, em preto-e-branco. Há uma dose de ironia nessas poses, claro. Mas não é um estranho fecho para um filme chamado "Meu Tempo É Hoje"?
É um risco, também, que o filme assume na mesma medida em que recolhe anedotas cotidianas do músico como restaurador de relógios ou colecionador de carros caindo aos pedaços. Que esse simpático antiquário carioca seja um dos maiores compositores do nosso tempo, que sua música seja tudo menos antiga, que sua idéia de mundo caia como um poema forte, perpetuamente novo, sobre nossas cabeças cansadas, é a contradição que funda o filme. Traduzida em prosa, fica mais ou menos assim: Paulinho não é o que ele diz, mas também não é o contrário; nem está livre do passado, nem preso a ele. E não há repertório de imagens capaz de nos mostrar essa suspensão.
Mas eis um caso em que imagens, afinal, não são tão necessárias. Nem prosa. A grande força do filme é nos pôr bem perto da música. Nada bate as imagens de Paulinho cantando e tocando violão ou cavaquinho. Seja em casa, seja na marcenaria, num estúdio, ou ao ar livre, seja sozinho, seja na companhia de parceiros como Elton Medeiros (tocando sua incrível caixa de fósforos), Marisa Monte ou a Velha Guarda da Portela (Monarco, Casquinha, Jair do Cavaco, Argemiro -o grande rosto do filme, só comparável ao de Pixinguinha), Paulinho da Viola fazendo música nos redime da falta de palavras, da falta de imagens, da falta de quase tudo.
As muitas cenas de convívio familiar e fraternal, nesse filme feito só entre família e amigos, ficam pequenas, afinal, na memória, por mais comovente que possa ser a sabedoria cotidiana do músico. É que a sabedoria musical engole tudo, em nuanças de tom e matizes da voz de um dos maiores compositores e um dos maiores cantores de "hoje" -quer dizer: do futuro.


Paulinho da Viola: Meu Tempo É Hoje   
Produção: Brasil, 2003
Direção: Izabel Jaguaribe
Quando: a partir de hoje nos cines Morumbi, Espaço Unibanco, Frei Caneca Unibanco Arteplex e Pátio Higienópolis



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