São Paulo, sábado, 8 de agosto de 1998

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Manual para aspirante a escritor é pura comédia

especial para a Folha


Nunca tinha lido um manual para quem quer se tornar escritor até "O Escritor de Fim-de-Semana - Como Escrever um Romance com Criatividade em 52 Fins-de-Semana" (editora Ática), de Robert J. Ray, cair nas minhas mãos.
Sempre tive a maior curiosidade sobre os conselhos que esses manuais podiam dar. E confesso que foi com certa histeria que comecei a rir já na epígrafe: "Para fulano e sicrano (...), que me ensinaram que o escritor nos Estados Unidos precisa ser roteirista e planejador, inventor e empreendedor, lapidador de palavras e palhaço".
Se fosse intencional, não seria tão engraçado. Porque este é um manual de mercado e marketing, específico para um determinado público (o norte-americano), uma determinada época (hoje) e um determinado lugar (os Estados Unidos). Nada tem a ver com literatura.
Só ao abandono das regras pode corresponder uma verdadeira invenção e liberdade literárias (literatura não tem nada a ver com roteiros de cinema).
Um manual de literatura já seria grotesco só por ensinar a caricatura das fórmulas narrativas, um método simplista e simplório de contar a mesma história de sempre com aparência de novidade (uma espécie de apropriação pragmática e imbecil das teses estruturalistas pelo mercado editorial), mas "O Escritor de Fim-de-Semana" vai muito além no gênero. É pura comédia.
Dá vontade de ficar citando infinitamente, tantas são as pérolas: "Seu primeiro romance desabrochará como um lótus a partir de algo que você conhece e ama: uma pessoa, um lugar..."; "Você vai precisar de um caderno, de um lápis ou caneta. Escrevo com uma Schaefer tinteiro..."; "É excelente idéia usar Cinderela como personagem-modelo em seu trabalho. Ela tem tenacidade, ímpeto e uma força incrível e persistente"; "Feche os olhos e observe sua respiração, inflando e desinflando o peito, enquanto reflete sobre todo o primeiro ato".
Trata-se, enfim, do manual do aprendiz de escritor na era da auto-ajuda. Ou seja: um guia para um sujeito totalmente obtuso, sem qualquer experiência própria, um autômato separado do mundo real e das emoções, incapaz de sentir ou refletir por conta própria sobre o que o cerca.
É como se não houvesse mais verdade, sensibilidade ou vivência, só técnica, mercado e marketing, quando o que caracteriza o verdadeiro escritor é justamente sua capacidade de escapar ao lugar-comum para, com uma percepção do mundo que é só sua, abrir um outro caminho para o entendimento das coisas. Um caminho que os manuais desse tipo tentam fechar com os conselhos mais idiotas -e, neste caso, hilariantes:
"Para montar imagens literárias, é interessante estudar a arte de escritores profissionais. Eles o fizeram. Você também pode fazê-lo. Basta combinar um verbo forte (lançar) com substantivos concretos (retângulo, mesa, camada, poeira). Depois, adicionam-se expressões adjetivas marcantes, que dão colorido à imagem (cor de mel) ou um determinado traço de riqueza (tampo de vidro da mesinha de centro). Para gerar ritmo, é importante alternar uma imagem forte (o sol lançando um retângulo sobre a mesa) com uma fraca oração concessiva (concessivo é relativo a concessão, com o sentido de "ceder a')".
Não seria nada absurdo confundir tal citação com um trecho qualquer de uma peça de Ionesco.
(BERNARDO CARVALHO)


Livro: O Escritor de Fim-de-Semana - Como Escrever um Romance com Criatividade em 52 Fins-de-Semana
Autor: Robert J. Ray
Lançamento: Ática
Quanto: R$ 29,90 (292 págs.)


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