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CINEMA
Textos de Kael são um exemplo de inteligência
NELSON ASCHER
ARTICULISTA DA FOLHA
É difícil dizer se a norte-americana Pauline Kael, que
morreu segunda-feira aos 82
anos, foi a maior crítica de cinema
do século 20 ou algo assim, pois
não há como medir esse tipo de
grandeza, e tais qualificações tampouco fazem muito sentido.
Pode-se, porém, afirmar sem
medo que, desde que, já entrada
na casa dos 40, ela passou a se dedicar àquilo que o cubano Cabrera Infante (ele mesmo um ótimo
praticante) chamou de "um ofício
do século 20" e, mais ainda, a partir do momento em que, no final
dos anos 60, tornou-se a crítica titular da revista "The New Yorker", sua fama e influência não
cessaram de crescer, suas opiniões foram discutidas acalorada
e não raro raivosamente, e seu estilo fez escola.
Kael possuía todas as características de um bom crítico. Ela gostava de cinema e acreditava na importância deste. Escrevia bem, deliciosamente, aliás, e com muita
clareza.
Em vez de apenas ditar suas opiniões do alto de um púlpito acadêmico, a crítica preferia discuti-las com o público através de jornais e revistas.
Pauline Kael sabia que os assuntos dos filmes contavam tanto
quanto seus aspectos mais técnicos e/ou profissionais, dos quais
ela também entendia e sobre os
quais era capaz de discorrer didaticamente.
Sua visão do mundo que o cinema tematizava (seu próprio mundo e tempo) era ampla e informada, e, embora lançasse constantemente mão dela para questionar
as muitas que os filmes apresentavam ou promoviam, ela evitou escrupulosamente a tentação de
tornar-se, em seus textos, socióloga, filósofa, psicóloga, guru, comentarista de tudo: a norte-americana manteve escrupulosamente seu foco e foi até o fim uma crítica de cinema.
O sucesso de sua carreira se mede pelo fato de que mesmo gente
que não tenha nem sequer ouvido
seu nome repete, de terceira ou
quarta mão, interpretações (que
já se tornaram quase oficiais) de
um sem-número de filmes, interpretações estas que não são mais
que suas opiniões.
O alvo dos ataques
Ela gostava do cinema de seu
tempo (dos anos 60-80) e não o
julgava em nada inferior ao de
qualquer nostálgica "era de ouro"
pregressa.
Acreditando que cinema de verdade é o de público, grande público, pois se trata mesmo de cultura
de massa (e não precisa de modo
nenhum se desculpar por isso, ou,
no caso do cinema industrial
americano, por ser americano),
ela investiu contra o conceito romântico de autoria quando aplicado a um produto industrial, coletivamente criado (mas que tem
responsáveis a serem responsabilizados na alegria e na tristeza), e
fez da idéia do "cinema de arte",
principalmente da pretensiosidade de seus defensores, o alvo preferencial de seus ataques.
O que ela detestava, convém sublinhar, era a pretensão e o sentimento de superioridade (dos intelectuais frente à massa, dos europeus "cultos" em face dos americanos "vulgares e materialistas"
etc.), pois os filmes "de arte" em
questão, ela os discutia como a todos os outros, em busca de méritos e defeitos.
Ela apreciava, por exemplo, os
de Bergman e Fellini, mas tratava
duramente Antonioni quando,
em "Zabriskie Point", chegando
aos EUA cheio de preconceitos e
apesar de não procurar se informar de nada, ele resolvia mostrar
aos americanos a "grande verdade" a respeito de seu país.
Vagueza, imprecisão, sugestões
genéricas de profundidade, falta
de substância e, principalmente,
pseudo-intelectualismo e afetação artística eram, para ela, os pecados imperdoáveis.
Periodicamente reunidos em
coletâneas cujos títulos os mesmos elementos (jogos de palavras, uso de coloquialismos e gíria
bem como de referências variadas) que davam aos seus textos
um sabor inconfundível tornam
arriscado traduzir, seus artigos
-que cobrem detalhadamente
toda a produção cinematográfica
da segunda metade do século que
passou- são não apenas uma
fonte incontornável de referência
e (para quem aprecia a boa prosa)
de prazer, mas também um modelo para os outros críticos e, para
todos nós, um exemplo de inteligência.
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