São Paulo, sábado, 08 de setembro de 2001

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RESENHA DA SEMANA

Gato por lebre

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Há cem anos, num artigo de jornal, o crítico paraense José Veríssimo (1857-1916) tentou responder a uma pergunta que segue sem resposta: "Que é literatura?".
E, para tanto, recorreu à mira do professor Winchester, um obscuro crítico literário americano cujo nome não deve ter contribuído para imortalizá-lo: "Não basta que um livro de literatura contenha verdades de interesse permanente, é preciso que ele tenha por si mesmo um interesse permanente".
Hoje a afirmativa pode parecer um tanto óbvia, ainda que continue à espera de assimilação pelos que, entre leitores e jornalistas, garantem e subscrevem o sucesso dos livros incluídos nas listas de best-sellers.
Insistindo em citar o professor Winchester, o crítico paraense prosseguia: "As verdades vivem, os livros morrem. Ninguém hoje precisa recorrer ao tratado original de Newton para aprender as verdades essenciais da teoria da gravitação. (...) Entretanto, nenhum livro é literatura, no sentido próprio da palavra, se ele pode ser no ano seguinte ou no seguinte século substituído por outro que diga as mesmas coisas e que as diga melhor. O livro deve ter por si mesmo permanência, e não ser apenas um meio temporário para a transmissão da verdade".
O mercado, no entanto, ao valorizar o "gosto natural" (o que demanda menor esforço do leitor) para alcançar o lucro mais imediato, tende a endossar o senso comum e a impor um parâmetro oposto: o livro não passa de veículo para uma mensagem. O que vale é o assunto, uma boa história, a revelação de uma verdade, e daí o interesse crescente pelos livros de reportagem, pelos romances históricos e pelas biografias, tomados como literatura em detrimento da ficção que, com a modernidade, havia transformado o texto literário num fim em si mesmo.
Afora alguns erros ortográficos comprometedores ("descriminar" em vez de "discriminar"; "locubrações" em vez de "lucubrações" etc.), "Que É Literatura?", que reúne artigos de José Veríssimo publicados em jornal, tem não apenas um interesse histórico (a coletânea, de 1907, nunca havia sido reeditada), mas uma triste e irônica atualidade. Embora não esclareça muita coisa sobre a literatura de hoje, mostra o retrocesso da atual realidade cultural.
Veríssimo tinha seus motivos para procurar uma definição específica da literatura. Formado pelo naturalismo (e tentando se afastar, na maturidade, do tipo de crítica sociológica que o naturalismo incentivava), buscou valores não mais sociais, nacionais ou étnicos, mas estéticos, para definir a literatura.
Leitor de Sainte-Beuve, Ruskin e Anatole France, queria inserir a literatura brasileira numa perspectiva mais universal e com isso, se por um lado devia sentir que se livrava do atraso nacional que o horrorizava e deprimia, por outro acabou por sintonizar-se com uma retórica clássica.
A despeito de um certo classicismo do seu pensamento estético, o crítico foi rigoroso no combate às imposturas que o atraso impunha (e impõe). Em 1911, afastou-se do cargo de secretário da Academia Brasileira de Letras, que havia ajudado a fundar, em repúdio à eleição do engenheiro e ministro Lauro Muller, que não havia escrito um único livro e serviu de precedente para a entrada de homens públicos e políticos na Academia. "A história de uma literatura deve, penso eu, e parece-me que esta é a compreensão comum, compreender somente o que é literatura", escreveu em sua polêmica com Sílvio Romero.
Apesar dos equívocos circunstanciais, havia algo heróico nos esforços idealistas de Veríssimo. Ao buscar definir parâmetros universais e específicos para a literatura, ele pretendia evitar as imposturas que se valem de elementos extra literários na defesa das obras ou na formação do gosto. Tentava evitar que o interesse da literatura pudesse ser despertado por algo além do seu próprio interesse literário.
Cem anos depois, não se pode dizer que seus esforços tenham vingado. Hoje, é importante para o funcionamento da indústria editorial que se saiba cada vez menos o que é literatura. A indefinição e a confusão dos parâmetros são peças fundamentais de uma sociedade que precisa confundir democracia com mercado, para poder vender gato por lebre.

Que É Literatura? E Outros Escritos    
Autor: José Veríssimo
Introdução: João Alexandre Barbosa
Editora: Landy
Quanto: R$ 30 (296 págs.)


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