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RESENHA DA SEMANA
Gato por lebre
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Há cem anos, num artigo de
jornal, o crítico paraense
José Veríssimo (1857-1916) tentou responder a uma pergunta
que segue sem resposta: "Que é
literatura?".
E, para tanto, recorreu à mira
do professor Winchester, um
obscuro crítico literário americano cujo nome não deve ter
contribuído para imortalizá-lo:
"Não basta que um livro de literatura contenha verdades de interesse permanente, é preciso
que ele tenha por si mesmo um
interesse permanente".
Hoje a afirmativa pode parecer um tanto óbvia, ainda que
continue à espera de assimilação
pelos que, entre leitores e jornalistas, garantem e subscrevem o
sucesso dos livros incluídos nas
listas de best-sellers.
Insistindo em citar o professor
Winchester, o crítico paraense
prosseguia: "As verdades vivem,
os livros morrem. Ninguém hoje precisa recorrer ao tratado
original de Newton para aprender as verdades essenciais da
teoria da gravitação. (...) Entretanto, nenhum livro é literatura,
no sentido próprio da palavra,
se ele pode ser no ano seguinte
ou no seguinte século substituído por outro que diga as mesmas coisas e que as diga melhor.
O livro deve ter por si mesmo
permanência, e não ser apenas
um meio temporário para a
transmissão da verdade".
O mercado, no entanto, ao valorizar o "gosto natural" (o que
demanda menor esforço do leitor) para alcançar o lucro mais
imediato, tende a endossar o
senso comum e a impor um parâmetro oposto: o livro não passa de veículo para uma mensagem. O que vale é o assunto,
uma boa história, a revelação de
uma verdade, e daí o interesse
crescente pelos livros de reportagem, pelos romances históricos e pelas biografias, tomados
como literatura em detrimento
da ficção que, com a modernidade, havia transformado o texto literário num fim em si mesmo.
Afora alguns erros ortográficos comprometedores ("descriminar" em vez de "discriminar"; "locubrações" em vez de
"lucubrações" etc.), "Que É Literatura?", que reúne artigos de
José Veríssimo publicados em
jornal, tem não apenas um interesse histórico (a coletânea, de
1907, nunca havia sido reeditada), mas uma triste e irônica
atualidade. Embora não esclareça muita coisa sobre a literatura
de hoje, mostra o retrocesso da
atual realidade cultural.
Veríssimo tinha seus motivos
para procurar uma definição específica da literatura. Formado
pelo naturalismo (e tentando se
afastar, na maturidade, do tipo
de crítica sociológica que o naturalismo incentivava), buscou
valores não mais sociais, nacionais ou étnicos, mas estéticos,
para definir a literatura.
Leitor de Sainte-Beuve, Ruskin e Anatole France, queria inserir a literatura brasileira numa
perspectiva mais universal e
com isso, se por um lado devia
sentir que se livrava do atraso
nacional que o horrorizava e deprimia, por outro acabou por
sintonizar-se com uma retórica
clássica.
A despeito de um certo classicismo do seu pensamento estético, o crítico foi rigoroso no combate às imposturas que o atraso
impunha (e impõe). Em 1911,
afastou-se do cargo de secretário da Academia Brasileira de
Letras, que havia ajudado a fundar, em repúdio à eleição do engenheiro e ministro Lauro Muller, que não havia escrito um
único livro e serviu de precedente para a entrada de homens públicos e políticos na Academia.
"A história de uma literatura deve, penso eu, e parece-me que
esta é a compreensão comum,
compreender somente o que é
literatura", escreveu em sua polêmica com Sílvio Romero.
Apesar dos equívocos circunstanciais, havia algo heróico nos
esforços idealistas de Veríssimo.
Ao buscar definir parâmetros
universais e específicos para a literatura, ele pretendia evitar as
imposturas que se valem de elementos extra literários na defesa
das obras ou na formação do
gosto. Tentava evitar que o interesse da literatura pudesse ser
despertado por algo além do seu
próprio interesse literário.
Cem anos depois, não se pode
dizer que seus esforços tenham
vingado. Hoje, é importante para o funcionamento da indústria
editorial que se saiba cada vez
menos o que é literatura. A indefinição e a confusão dos parâmetros são peças fundamentais
de uma sociedade que precisa
confundir democracia com
mercado, para poder vender gato por lebre.
Que É Literatura? E Outros
Escritos
Autor: José Veríssimo
Introdução: João Alexandre Barbosa
Editora: Landy
Quanto: R$ 30 (296 págs.)
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