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"PEIXE DOURADO"
Le Clézio entra na rota da errância
CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR DO FOLHATEEN
Não fosse conhecedor e,
ainda mais, narrador fascinado pelo nomadismo J.M.G. Le
Clézio poderia ser confundido
com um daqueles escritores franceses que culpam o fenômeno da
globalização como o responsável
por todas as mazelas do mundo.
"Peixe Dourado", escrito em
1997, é uma parábola política desse estado de coisas, mas é também
uma viagem literária de impacto.
O livro tem como protagonista e
narradora uma menina negra,
Laila, capaz de se mover pelos
continentes com a mesma facilidade com que um peixe atravessa
de uma corrente para outra.
Com essa mobilidade Laila traduz em tintas fortes e emocionantes o destino de milhares de seres
que vagam sobre a face do planeta
globalizado. Sem casa, sem terra,
sem lei, os refugiados e os imigrantes constituem hoje uma
massa humana indefinida, rejeitada por governos, e um problema crescente.
Só que em "Peixe Dourado" Le
Clézio evita as facilidades do romance-denúncia e apenas narra,
com a elegância que lhe é peculiar,
a vida tal como vista pelos olhos
de uma criatura sem destino.
"Há uma rua branca de sol,
poeirenta e vazia, o céu azul, o grito lancinante de um pássaro negro e, de repente, mãos de homem que me jogam dentro de um
saco e eu sufoco" são as palavras
com que Laila evoca o momento
em que, bem criança, foi transformada em mercadoria.
Sua vida vai ser uma sucessão de
fugas e retomadas de posse sobre
seu corpo, primeiro, numa perspectiva estritamente comercial,
depois, à medida que cresce,
avança em contornos sexuais, afetivos e, por fim, existenciais.
Esse embate servidão x libertação se traduz na linguagem e, melhor ainda, no relato, todo feito a
partir da visão de Laila. Visão que
se torna mais aguçada num dos
momentos mais esplendorosos
do livro, quando Laila, já parcialmente surda, perde a audição por
completo e assim consegue reconquistar sua "verdade" pessoal.
Outra solução narrativa que aumenta o encantamento de "Peixe
Dourado" é a supressão de quase
toda análise psicológica. Em troca, o relato se enriquece de uma
dimensão "extra-ordinária" conduzida por percepções, sensações, cheiros, cores e texturas.
Também não escapa a "Peixe
Dourado" a dimensão política.
Um dos poucos objetos aos quais
Laila se apega de fato e que constitui um de seus resíduos de identidade é um exemplar velho e desbotado de "Os Condenados da
Terra", de Frantz Fanon (1925-1961), escritor de expressão francesa "malgré lui" e um dos mais
ferozes críticos do colonialismo.
A referência é eloquente por si.
Mas é por meio de um existencialismo invulgar, focado no tema
clássico da errância, que Le Clézio
dá provas de maestria. Sua (anti-)heroína, mesmo quando parece
não ter nada a seu favor, descobre
que o destino é, por natureza, errático. E revela para si e para os
leitores do romance que, para fazer sentido, a vida tem antes que
ser vivida.
Peixe Dourado
Poisson d'Or
Autor: J.M.G. Le Clézio
Tradutora: Maria Helena Rodrigues de
Souza
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 26 (216 págs.)
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