São Paulo, sábado, 08 de setembro de 2001

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"PEIXE DOURADO"

Le Clézio entra na rota da errância

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR DO FOLHATEEN

Não fosse conhecedor e, ainda mais, narrador fascinado pelo nomadismo J.M.G. Le Clézio poderia ser confundido com um daqueles escritores franceses que culpam o fenômeno da globalização como o responsável por todas as mazelas do mundo. "Peixe Dourado", escrito em 1997, é uma parábola política desse estado de coisas, mas é também uma viagem literária de impacto.
O livro tem como protagonista e narradora uma menina negra, Laila, capaz de se mover pelos continentes com a mesma facilidade com que um peixe atravessa de uma corrente para outra.
Com essa mobilidade Laila traduz em tintas fortes e emocionantes o destino de milhares de seres que vagam sobre a face do planeta globalizado. Sem casa, sem terra, sem lei, os refugiados e os imigrantes constituem hoje uma massa humana indefinida, rejeitada por governos, e um problema crescente.
Só que em "Peixe Dourado" Le Clézio evita as facilidades do romance-denúncia e apenas narra, com a elegância que lhe é peculiar, a vida tal como vista pelos olhos de uma criatura sem destino.
"Há uma rua branca de sol, poeirenta e vazia, o céu azul, o grito lancinante de um pássaro negro e, de repente, mãos de homem que me jogam dentro de um saco e eu sufoco" são as palavras com que Laila evoca o momento em que, bem criança, foi transformada em mercadoria.
Sua vida vai ser uma sucessão de fugas e retomadas de posse sobre seu corpo, primeiro, numa perspectiva estritamente comercial, depois, à medida que cresce, avança em contornos sexuais, afetivos e, por fim, existenciais.
Esse embate servidão x libertação se traduz na linguagem e, melhor ainda, no relato, todo feito a partir da visão de Laila. Visão que se torna mais aguçada num dos momentos mais esplendorosos do livro, quando Laila, já parcialmente surda, perde a audição por completo e assim consegue reconquistar sua "verdade" pessoal.
Outra solução narrativa que aumenta o encantamento de "Peixe Dourado" é a supressão de quase toda análise psicológica. Em troca, o relato se enriquece de uma dimensão "extra-ordinária" conduzida por percepções, sensações, cheiros, cores e texturas.
Também não escapa a "Peixe Dourado" a dimensão política. Um dos poucos objetos aos quais Laila se apega de fato e que constitui um de seus resíduos de identidade é um exemplar velho e desbotado de "Os Condenados da Terra", de Frantz Fanon (1925-1961), escritor de expressão francesa "malgré lui" e um dos mais ferozes críticos do colonialismo. A referência é eloquente por si.
Mas é por meio de um existencialismo invulgar, focado no tema clássico da errância, que Le Clézio dá provas de maestria. Sua (anti-)heroína, mesmo quando parece não ter nada a seu favor, descobre que o destino é, por natureza, errático. E revela para si e para os leitores do romance que, para fazer sentido, a vida tem antes que ser vivida.

Peixe Dourado
Poisson d'Or
   
Autor: J.M.G. Le Clézio
Tradutora: Maria Helena Rodrigues de Souza
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 26 (216 págs.)


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