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MARCELO COELHO
Indie
O mais provável é que as
pessoas acabem indo ver esse filme por engano. Comigo
aconteceu que as outras salas do
Arteplex estavam lotadas e, com
certeza, "O Agente da Estação",
de Tom McCarthy, não tem nada
capaz de atrair as multidões.
Parece até feito de propósito para qualquer espectador fugir correndo. Um anão que adora transportes ferroviários muda-se para
um lugar perdido no interior dos
Estados Unidos, onde nada acontece. Lá encontra uma artista
plástica com sérios problemas de
coordenação motora e um latino-americano que vende café com
leite num trailer.
Mas o filme é lindo e não exige
de nós nenhum esforço solidário,
nenhuma reserva de culpa ou empenho de correção política. Desde
o início, somos confrontados com
o sofrimento de Fin McBride, o
anão: no supermercado, a moça
do caixa não o vê; os adolescentes
na rua dirigem-lhe brincadeiras
idiotas; a bibliotecária do lugarejo toma um susto quando ele surge de entre as estantes.
A seriedade, a indiferença, a tenaz antipatia de Fin desencorajam qualquer atitude de paternalismo e comiseração tanto do espectador quanto dos personagens
que o cercam. "Chega a ser engraçado", diz ele num raro momento
de confidência, "o quanto as pessoas ficam tomadas quando vêem
um anão". Afinal, continua, "somos em geral pessoas absolutamente sem graça". Just boring
people.
Ele não está disposto a conversar com ninguém, muito menos
com o vendedor de café com leite,
cuja inconveniência e tagarelice
não têm limites. A artista plástica, movida por muito sentimento
de culpa, tenta aproximar-se de
Fin: precisará insistir bastante
para ser recebida.
Tudo parece configurado para
que nenhum personagem se relacione com os demais, do mesmo
modo que o filme inteiro parece
feito de encomenda para não ser
visto. Vencedor do festival de cinema independente de Sundance,
"O Agente da Estação" tem mesmo algo de programático em seu
ponto de partida: trata-se de ser
um blockbuster em negativo. Como se cruzássemos um anão na
rua, eis um filme do qual deveríamos, em princípio, desviar o nosso
olhar.
Só que já estamos dentro da sala; a câmera se demora no rosto
fechado do ator (Peter Dinklage)
e acompanha seus movimentos
sem nenhuma emotividade. Trata-o como se fosse a pessoa mais
normal do mundo, coisa que ele é
de fato. E, em duas ou três tomadas, no máximo, o diretor já ajustou o nosso, digamos, "foco emocional" para que possamos assistir ao resto do filme.
O elogio da sem-gracice, do tédio, do desinteresse -quase num
manifesto "indie" contra a movimentação histérica do cinema de
ação americano- não faz de "O
Agente" um filme chato. Ao contrário, nascem daí muitas situações humorísticas. Temos o prazer de rir bastante nesse filme,
mas sem maldade nem sarcasmo:
tudo nasce de uma graça sem ridículo e de uma simpatia que dispensa a comiseração.
Fin participa das reuniões de
um grupo de fanáticos por ferrovias. Lá, sim, é que podem ser vistos os filmes mais chatos do mundo: uma das atividades do grupo
é filmar, na íntegra, viagens de
trem, que vão sendo narradas para a platéia: "Agora entramos
dentro de um túnel longo... isto
vai durar uns dez minutos...". A
tela fica escura. Corte para o rosto
de Fin; ele acende um cigarro,
sem expressão nenhuma; não está
interessado em nossa opinião.
O hobby de esperar trens, de
conferir o horário de sua passagem, de restaurar vagões vazios e
de consertar trenzinhos de brinquedo parece significar, no contexto do filme, a valorização de
tudo o que demora para acontecer, de toda comunicação que não
se faz de imediato, de tudo o que
exige paciência, tenacidade e
quietude.
Antes de mais nada, é preciso
que as pessoas -personagens e
espectadores- se acostumem a
olhar longamente para Fin; só então é que a comunicação verbal, a
conversa, a amizade, poderão estabelecer-se sinceramente. Nesse
sentido -e graças a uma fotografia cheia de closes, que parece ter
a temperatura da pele humana-
"O Agente da Estação" consiste
num elogio do olhar, como notou
Bruno Yutaka Saito em sua crítica na Ilustrada.
E é também uma condenação a
tudo o que desvia nossa atenção,
a tudo que interrompe a espera e
o silêncio. O telefone celular desempenha na história do filme
(assim como nas salas de cinema
de todo o mundo) um papel de
perturbação. As relações entre os
personagens não só são difíceis de
estabelecer, como também podem
cessar a qualquer momento.
Quando menos se espera, o clima
de torcida emocional se estabelece sutilmente na platéia.
Para nós, brasileiros, sempre
causa estranheza o grau de sinceridade e objetividade que os americanos revelam na conversa do
dia-a-dia. "Você gostaria de ir comigo a tal lugar?", pergunta um
personagem. "Não, realmente
não tenho vontade", diz o outro.
Transparência verbal e defesa
acirrada do isolamento se combinam e têm de se haver com a carência e a solidão que todos também sentem.
Claro que todo filme quer ter algum tipo de sucesso. "O Agente da
Estação" é um filme orgulhoso e
recluso como seus personagens;
seu tema oculto (nem tão oculto
assim) talvez seja a obsolescência
-não só dos velhos trens, mas do
velho cinema também: a primeira
película já feita mostrava justamente um trem chegando à estação. Desse ponto de vista, Tom
McCarthy fez um filme muito voltado para si mesmo, para a sua
própria condição de "independente", de "anão" diante da indústria cinematográfica dominante e das possibilidades técnicas abertas pela fotografia digital.
Mas está longe de ser sem graça e
obviamente anseia para que gostemos dele. Não é nada difícil.
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