São Paulo, quarta-feira, 08 de setembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCELO COELHO

Indie

O mais provável é que as pessoas acabem indo ver esse filme por engano. Comigo aconteceu que as outras salas do Arteplex estavam lotadas e, com certeza, "O Agente da Estação", de Tom McCarthy, não tem nada capaz de atrair as multidões.
Parece até feito de propósito para qualquer espectador fugir correndo. Um anão que adora transportes ferroviários muda-se para um lugar perdido no interior dos Estados Unidos, onde nada acontece. Lá encontra uma artista plástica com sérios problemas de coordenação motora e um latino-americano que vende café com leite num trailer.
Mas o filme é lindo e não exige de nós nenhum esforço solidário, nenhuma reserva de culpa ou empenho de correção política. Desde o início, somos confrontados com o sofrimento de Fin McBride, o anão: no supermercado, a moça do caixa não o vê; os adolescentes na rua dirigem-lhe brincadeiras idiotas; a bibliotecária do lugarejo toma um susto quando ele surge de entre as estantes.
A seriedade, a indiferença, a tenaz antipatia de Fin desencorajam qualquer atitude de paternalismo e comiseração tanto do espectador quanto dos personagens que o cercam. "Chega a ser engraçado", diz ele num raro momento de confidência, "o quanto as pessoas ficam tomadas quando vêem um anão". Afinal, continua, "somos em geral pessoas absolutamente sem graça". Just boring people.
Ele não está disposto a conversar com ninguém, muito menos com o vendedor de café com leite, cuja inconveniência e tagarelice não têm limites. A artista plástica, movida por muito sentimento de culpa, tenta aproximar-se de Fin: precisará insistir bastante para ser recebida.
Tudo parece configurado para que nenhum personagem se relacione com os demais, do mesmo modo que o filme inteiro parece feito de encomenda para não ser visto. Vencedor do festival de cinema independente de Sundance, "O Agente da Estação" tem mesmo algo de programático em seu ponto de partida: trata-se de ser um blockbuster em negativo. Como se cruzássemos um anão na rua, eis um filme do qual deveríamos, em princípio, desviar o nosso olhar.
Só que já estamos dentro da sala; a câmera se demora no rosto fechado do ator (Peter Dinklage) e acompanha seus movimentos sem nenhuma emotividade. Trata-o como se fosse a pessoa mais normal do mundo, coisa que ele é de fato. E, em duas ou três tomadas, no máximo, o diretor já ajustou o nosso, digamos, "foco emocional" para que possamos assistir ao resto do filme.
O elogio da sem-gracice, do tédio, do desinteresse -quase num manifesto "indie" contra a movimentação histérica do cinema de ação americano- não faz de "O Agente" um filme chato. Ao contrário, nascem daí muitas situações humorísticas. Temos o prazer de rir bastante nesse filme, mas sem maldade nem sarcasmo: tudo nasce de uma graça sem ridículo e de uma simpatia que dispensa a comiseração.
Fin participa das reuniões de um grupo de fanáticos por ferrovias. Lá, sim, é que podem ser vistos os filmes mais chatos do mundo: uma das atividades do grupo é filmar, na íntegra, viagens de trem, que vão sendo narradas para a platéia: "Agora entramos dentro de um túnel longo... isto vai durar uns dez minutos...". A tela fica escura. Corte para o rosto de Fin; ele acende um cigarro, sem expressão nenhuma; não está interessado em nossa opinião.
O hobby de esperar trens, de conferir o horário de sua passagem, de restaurar vagões vazios e de consertar trenzinhos de brinquedo parece significar, no contexto do filme, a valorização de tudo o que demora para acontecer, de toda comunicação que não se faz de imediato, de tudo o que exige paciência, tenacidade e quietude.
Antes de mais nada, é preciso que as pessoas -personagens e espectadores- se acostumem a olhar longamente para Fin; só então é que a comunicação verbal, a conversa, a amizade, poderão estabelecer-se sinceramente. Nesse sentido -e graças a uma fotografia cheia de closes, que parece ter a temperatura da pele humana- "O Agente da Estação" consiste num elogio do olhar, como notou Bruno Yutaka Saito em sua crítica na Ilustrada.
E é também uma condenação a tudo o que desvia nossa atenção, a tudo que interrompe a espera e o silêncio. O telefone celular desempenha na história do filme (assim como nas salas de cinema de todo o mundo) um papel de perturbação. As relações entre os personagens não só são difíceis de estabelecer, como também podem cessar a qualquer momento. Quando menos se espera, o clima de torcida emocional se estabelece sutilmente na platéia.
Para nós, brasileiros, sempre causa estranheza o grau de sinceridade e objetividade que os americanos revelam na conversa do dia-a-dia. "Você gostaria de ir comigo a tal lugar?", pergunta um personagem. "Não, realmente não tenho vontade", diz o outro. Transparência verbal e defesa acirrada do isolamento se combinam e têm de se haver com a carência e a solidão que todos também sentem.
Claro que todo filme quer ter algum tipo de sucesso. "O Agente da Estação" é um filme orgulhoso e recluso como seus personagens; seu tema oculto (nem tão oculto assim) talvez seja a obsolescência -não só dos velhos trens, mas do velho cinema também: a primeira película já feita mostrava justamente um trem chegando à estação. Desse ponto de vista, Tom McCarthy fez um filme muito voltado para si mesmo, para a sua própria condição de "independente", de "anão" diante da indústria cinematográfica dominante e das possibilidades técnicas abertas pela fotografia digital. Mas está longe de ser sem graça e obviamente anseia para que gostemos dele. Não é nada difícil.


Texto Anterior: Design: Guinter Parschalk une imaginário brasileiro e luz em exposição
Próximo Texto: Panorâmica - Cinema: "Olga" perde liderança para "A Vila"
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.