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Crítica
Autor põe leitor na mente do carrasco
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
É curioso como, numa
narrativa tão vasta,
não haja nenhum
personagem completo salvo
o narrador, Maximilien Aue.
Todas as dezenas de figuras
que povoam este impressionante romance, incluindo as
mais importantes, são projeções do protagonista.
É como se elas não andassem com as próprias pernas.
Sua fala se mostra encapsulada nos longos parágrafos
do romance como frisos na
ampla e soturna arquitetura
composta pelas reminiscências de Aue.
Mesmo Aue é um personagem problemático. Alguns
críticos assinalam a caracterização algo excessiva do oficial da SS que logra escapar
do cerco dos aliados e, sob
nova identidade, torna-se industriário na França. Ele é
homossexual, nutre uma paixão incestuosa pela irmã, é
um refinado intelectual capaz de confabular em grego
antigo no campo de batalha e
é perseguido pelo assassinato da mãe e do padrasto.
Ele afirma que "nas horas
perdidas, escrever é igual a
outra ocupação qualquer".
Nada mais falso. Como um
inventariante furioso, compelido a catalogar as infinitas
facetas da guerra, até as mais
horríveis, Aue escreve para
descobrir a verdade, a qual,
conforme ele também ressalta, é tão indispensável à
vida quanto "o ar, a comida, a
bebida e a excreção".
Como um Estado que se
diz racional, pergunta-se ele,
pode tornar-se um assassino
sanguinário? Como pessoas
comuns podem ter matado,
às vezes com sadismo, homens, mulheres e crianças?
Como ele, Aue, pode ter presenciado tudo isso com vexaminoso prazer?
Significativamente, Aue
-mais um observador do
que um perpetrador do inferno- quase não age. Essa
atitude contrasta com as
ações que ele toma, aí sim,
em suas incursões homossexuais. É como se o prazer de
agir (para a satisfação do desejo) combinasse com o horror do olhar (pelo espreitamento do interdito).
As Benevolentes do título
referem-se às deusas gregas
Eumênides, instância amena
das Erínias, as vingadoras
dos crimes. As Erínias nasceram quando Cronos decepou
o pênis do pai Céu. Dos salpicos de sangue caídos sobre a
Terra, brotaram essas deusas
punidoras, enquanto, do esperma que respingou no
Mar, surgiu Afrodite. O amor
e a expiação surgem ao mesmo tempo, tanto no mito
quanto para Aue.
Sua culpa não é a de quem
agiu, mas a de quem, como
observador, extraiu prazer
na visão daquilo que deveria,
antes, causar vergonha. Não
é à toa que ele cita uma passagem de "A República", em
que Leôncio, lutando em vão
para não contemplar o espetáculo dos cadáveres em Pireu, sucumbe e diz: "Desisto,
malditos olhos, deleitem-se
com esse belo espetáculo".
É esse horrendo "belo espetáculo" que Aue descortina ao leitor, que, por sua vez,
também corre o risco de se
perder ao olhar, ao pegar-se
caminhando despreocupado
dentro da mente sedutora do
carrasco.
AS BENEVOLENTES
Autor: Jonathan Littell
Tradução: André Telles
Editora: Objetiva/Alfaguara
Quanto: R$ 79,90 (912 págs.)
Avaliação: ótimo
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