São Paulo, sábado, 08 de setembro de 2007

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Crítica

Autor põe leitor na mente do carrasco

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

É curioso como, numa narrativa tão vasta, não haja nenhum personagem completo salvo o narrador, Maximilien Aue. Todas as dezenas de figuras que povoam este impressionante romance, incluindo as mais importantes, são projeções do protagonista.
É como se elas não andassem com as próprias pernas. Sua fala se mostra encapsulada nos longos parágrafos do romance como frisos na ampla e soturna arquitetura composta pelas reminiscências de Aue.
Mesmo Aue é um personagem problemático. Alguns críticos assinalam a caracterização algo excessiva do oficial da SS que logra escapar do cerco dos aliados e, sob nova identidade, torna-se industriário na França. Ele é homossexual, nutre uma paixão incestuosa pela irmã, é um refinado intelectual capaz de confabular em grego antigo no campo de batalha e é perseguido pelo assassinato da mãe e do padrasto.
Ele afirma que "nas horas perdidas, escrever é igual a outra ocupação qualquer". Nada mais falso. Como um inventariante furioso, compelido a catalogar as infinitas facetas da guerra, até as mais horríveis, Aue escreve para descobrir a verdade, a qual, conforme ele também ressalta, é tão indispensável à vida quanto "o ar, a comida, a bebida e a excreção".
Como um Estado que se diz racional, pergunta-se ele, pode tornar-se um assassino sanguinário? Como pessoas comuns podem ter matado, às vezes com sadismo, homens, mulheres e crianças? Como ele, Aue, pode ter presenciado tudo isso com vexaminoso prazer?
Significativamente, Aue -mais um observador do que um perpetrador do inferno- quase não age. Essa atitude contrasta com as ações que ele toma, aí sim, em suas incursões homossexuais. É como se o prazer de agir (para a satisfação do desejo) combinasse com o horror do olhar (pelo espreitamento do interdito).
As Benevolentes do título referem-se às deusas gregas Eumênides, instância amena das Erínias, as vingadoras dos crimes. As Erínias nasceram quando Cronos decepou o pênis do pai Céu. Dos salpicos de sangue caídos sobre a Terra, brotaram essas deusas punidoras, enquanto, do esperma que respingou no Mar, surgiu Afrodite. O amor e a expiação surgem ao mesmo tempo, tanto no mito quanto para Aue.
Sua culpa não é a de quem agiu, mas a de quem, como observador, extraiu prazer na visão daquilo que deveria, antes, causar vergonha. Não é à toa que ele cita uma passagem de "A República", em que Leôncio, lutando em vão para não contemplar o espetáculo dos cadáveres em Pireu, sucumbe e diz: "Desisto, malditos olhos, deleitem-se com esse belo espetáculo".
É esse horrendo "belo espetáculo" que Aue descortina ao leitor, que, por sua vez, também corre o risco de se perder ao olhar, ao pegar-se caminhando despreocupado dentro da mente sedutora do carrasco.


AS BENEVOLENTES
Autor: Jonathan Littell
Tradução: André Telles
Editora: Objetiva/Alfaguara
Quanto: R$ 79,90 (912 págs.)
Avaliação: ótimo



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